2016-05-28





“Pedra de Toque”

By Gerald Thomas © New York – London 2009

Quando eu atravessava a ponte de Williamsburg, na madrugada de 11 para 12 de setembro de 2001, em direção ao Ground Zero para ver se conseguia chegar ao monte de ruínas daquelas duas torres  que eu vi crescendo, lentamente, andar por andar, e depois ruindo, numa só explosão, numa só exploBUM, no  chão aquele monte de ferro retorcido, aquelas duas torres com cara de nada, a cara da geração de Warhol, retorcida e derretida no chão,  o impacto bateu no meu fígado, pessoas passavam desnorteadas em todas as direções. Meus olhos procuravam se fixar nos rostos menos retorcidos que eu podia achar, assim como numa certa manhã, atravessando a Ataulfo de Paiva, segurando a mão da minha mãe bem forte porque havia um morto coberto por aquele horrendo lençol branco e cercado de quatro velas acesas: eram as cenas normais da vida carioca às quais ainda não estávamos acostumados. Meus olhos então veem um passarinho morto no chão, isso na Ataulfo de Paiva, em plena década de 60 no Rio. Um passarinho irmão, morto e empoeirado e seco hoje, nessa tentativa de atravessar essa ponte para ir até o Ground Zero.

Toda aquela poeira me cobria e parecia a poeira de todo o século XX, a poeira deixada de tudo aquilo em que eu acreditava no século que acabava de ser fechado, assim como eu fechava as cortinas depois de espetáculos empoeirados e com igual quantidade de fumaça! Minha cabeça naquele dia estava suicida.

Eu, meio quase nada, estava atravessando aquela ponte, atravessando em braile,  em direção a um  monte de ruínas pegando fogo. E eu caminhava naquela direção para conferir o quê? As pedras no chão? Ainda voltando no tempo e segurando na mão da minha mãe, me pego do lado de fora de uma doceria e descubro algo que me assusta terrivelmente: vejo uma mendiga enorme, velha, com um de seus seios à mostra e um filho no colo.  Me sinto estrangulado, sufocado eroticamente seduzido. Talvez a minha primeira percepção de erotismo ou de amor até.  Eu vivia numa espécie de solilóquio interno, nunca falado da boca para fora, sempre interno e que, eu achava, me colocava em contato com as estrelas, com o universo. Eu estava apaixonado por aquela mendiga, trocaria tudo para estar com ela, no colo dela, mas minha mãe, provavelmente notando isso, puxou a minha mão ainda mais forte e saímos dali com mais pressa.

Já faz não sei quantas horas que o World Trade Center caiu. Quando criança eu abria a porta do armário e brincava com as ruínas ou detritos do Lego e me encurralava para dentro da cama ou para dentro daquele imenso armário barroco que virou o meu “teatro”, a minha “arena de ações fictícias”, onde bonecos e cabides, velas e volumes quaisquer faziam uma verdadeira mise-en-scène. O barulho das torres caindo, assim como o das crianças na rua jogando bola, era ensurdecedor, e eu queria estar onde os mendigos estavam, onde as ruínas estavam, onde os “rejeitados” estavam, porque sentia que não teria pique para aguentar essa farsa: já lá logo cedo dei a isso um nome: love.

Era tanta coisa!  O que eu havia visto naquele dia, digo, o desmoronamento que eu havia presenciado naquele dia culminou numa espécie de êxtase, aquele que leva as pessoas a um clímax coletivo. Me aproximando lentamente, muito lentamente das ruínas do Ground Zero, aquela confusão toda, gente por tudo que é lado, minha reação foi estranha. Virei para trás. Quis dar meia volta e retornar, mas paralisei. Se alguém estivesse vendo as minhas pupilas dilatadas talvez estivesse vendo a Guernica revivida, as vacas da tela de Picasso apagando aquela lâmpada, ou então a “Europa depois da chuva”, de Max Ernst, mais destruída ainda, sei lá, não sei o que descrevo.  É avassalador como algumas obras de arte têm o poder de invadir nossas cabeças nesses momentos de tragédia.  Ruínas dessa proporção parecem que têm esse poder. Será que a destruição do poder também terá esse poder? Me aproximei. Assim como uma criança ou um ser apaixonado ou apavorado, acabo de ter aquele ataque de lucidez absoluta, uma lucidez a meu respeito. Digo, me percebi “perecível”. Minhas feições, troncos, membros e – até então – uma curta existência eram todos uma ruína em plena paranoia. Quando criança era porque minha mãe me arrancava da mendiga minha paixão. Hoje porque…

Cheguei lá nas ruínas, nas tais ruínas que Beckett tanto descreve em sua prosa e em sua dramaturgia “were the ruins still there where you played as a child, when was that?”, da peça That Time (Aquela Vez) na qual dirigi Julian Beck também aqui em Nova York há 23 anos. Julian, nas ultimas, era uma “ruína” em si.

Quimioterapia e câncer no corpo inteiro, seria a primeira vez em que Beck pisaria fora do seu “Living Theater” e me convidou para dirigi-lo. Isso é, até hoje, um ponto de interrogação na minha vida.  Logo eu? Juntei Beck com Beckett e comecei esse louco processo metalinguístico que conta uma verdade dentro de outra e cria mais de uma camada de leituras: o ator estava doente e o público, seu imenso público, sabia disso. A peca só mostrava a cabeça de uma pessoa imóvel ouvindo vozes de três fases diferentes da vida do seu próprio passado. A combustão era estarrecedora. “Se a ruína ainda estava lá, onde você brincava em menino, onde foi aquilo?”. O público ouvia isso e achava que seria a última vez. E foi. Logo depois da nossa apresentação aqui no La MaMa, fomos para Frankfurt e Julian morreu durante a temporada, digo, na volta de Frankfurt.

Nas ruínas em chamas do WTC, bombeiros, polícia e todo tipo de isolamento possível, mas, de alguma forma, entrei. Sentei e chorei pelo dia intenso de perplexidades. Se soubesse então o que sei agora, o que teria feito? Mas o que sei agora? Iraque? Conspirações? Politicagens?

Quando levei meu pai de volta para Berlim o “Muro” ainda não tinha caído. Meu pai não tinha voltado para sua Berlin desde a guerra. O que se via do lado de cá, do “nosso” lado ocidental, olhando para a Berlim Oriental (de binóculos), eram ruínas, arame farpado e guaritas com soldados e alguns coelhos andando entre os dois muros. O Muro eram dois, com minas, caso alguém conseguisse pular. Cento e cinquenta mil tentaram. Baleados, calados, furados, peneirados, eles podem contar uma história tão sórdida quanto o resto das divisões geopolíticas das tantas Europas, com suas emboscadas étnicas que terminam assim, com um tratado entre tratantes. Antes da Primeira Guerra ou pós-Segunda Guerra, ou entre uma e outra, as fronteiras inimagináveis agora eram mais que imagináveis e até amigáveis. Mas entre a imaginação e a assimilação, morrem milhares de seres humanos. Ah sim, e cavalos. Meu pai, plantado em cima daquelas plataformas de madeira, seja numa das extremidades de Berlim Ocidental ou noutra, calado, sempre calado, não conseguia reconhecer sua cidade. Ou melhor, entendia e sofria tanto, tanto que nada dizia. Uma sensação bem parecida com a criatura beckettiana que o Julian interpretou três anos mais tarde em That Time, nada dizendo, somente apavorado com “se as ruínas ainda estavam lá onde eu brincava…”

Meu pai não sobreviveu para ver a queda do Muro. Morreu acreditando para sempre em sua Berlin dividida, cortada ao meio cirurgicamente, ou ilhada, seja como queira ser visto o Muro pichado, sua Berlim dividida entre  aliados e russos. Morreu no meio da temporada, entreatos.

Uma historinha engraçada: meu tio, o Joachin, que era uma espécie de ministro da “sanitarização” na Alemanha Ocidental (mas cujo trabalho foi fundamental na limpeza do rio Tâmisa, onde hoje nadam trutas e salmões – digo em parte dele), enfim, esse tio, tia Marly e meus primos fomos comemorar o aniversário da minha avó “maldosa”, a Paula: fomos no restaurante do Hotel Kempinski, no Kurfürstendamm, avenidona principal de Berlim. Chiquérrimo, na época. Depois de lagostas e outras “ostras”, tudo flambado e adequadamente banhado em cremes enjoativos, como as comidas da época pediam,  ele “ordenou” a sobremesa mais cara do lugar: nós, as crianças (odiando tudo, pois estávamos “engravatados”), não contivemos o riso, a gargalhada, pois os pretensiosos garçons tchecos vieram, numa minuciosa coreografia, destampar os doze pratos enormes e, dentro deles, uma banana. Sim, em cada prato uma banana meio descascada, como naquele cartoon clássico: a casca da banana meio retorcida para trás como se fosse uma preciosidade de plástico, digo, de ouro! Essa era a sobremesa mais cara de onde eu brincava em menino? Não, eu vinha do Rio e meus primos, de Caracas. Morremos de rir. Banana de dar e crescer!

Ground Zero. O fogo altíssimo, muita fumaça e muita poeira e muita gente, e eu não sabia muito bem como sair de lá, agora que estava plantado lá, já que atravessei todas as barreiras para chegar lá, mas sabia que tinha que ser, tinha que estar lá, ver aquilo tudo, depois de ver a catástrofe da minha janela em Brooklyn.

Peguei uma pedra no chão. Não sei se era, de fato, um pedaço do World Trade Center, mas quero acreditar que sim. E com ela sentei numa pilha de poeira, ou melhor, de ruínas, e chorei o resto da madrugada. Até que a polícia me deu um macacão amarelo de trabalhador e me disse “GET TO WORK” e me puseram para trabalhar.

Nesse momento, acho que entrei em delírio: como assim, “get to work”? Não consigo sair desse paradoxo circular, ou seja, esse som de bomba que foram os aviões batendo, ou as guitarras de Hendrix tremendo no Fillmore East, aqui perto, há trinta e oito anos, e esse barulho de novo nos meus ouvidos como se fosse uma ordem ao contrário, com eco e tudo: “Eu não aguento mais” e – como se plagiando Lapoujade, sinto tudo aquilo contra o qual devo me defender – “GET TO WORK”! Como assim???  Me defender das torres caindo e da pedra na minha mão, daquilo que meu corpo sofre e me faz sofrer, dos outros caminhando em vão na minha frente empoeirados e fedendo a morte? Fui, de fato. Fui trabalhar lá, onde as ruínas estavam. Mas não fui brincar.

Me sinto o último dos últimos, e sem a menor identidade e, nesse momento quero mandar todos à merda num único e último banquete: desde Nietzsche a Deleuze. E aqueles a quem Nietzsche chama de homens superiores…  Superiores é a merda. Vem para cá, Herr Nietzsche. Vem ler essa frase aqui: “Não aguento mais.” Que tal? Em qual Trieste triste estás agora, Sr. Nietzsche, ou será que ainda estás sentado debaixo do piano de Wagner, encantado pela overture de Tannhäuser? Nada disso. O cavalo que o senhor viu sendo espancado eu vejo todos os dias nos rostos de todas as pessoas. E as catástrofes? Eu as vejo todos os momentos. E em todos os lugares. Sim, seus planetas são ótimos, seus Zeuses, Deuses, “Dioneuses”, “Zaragogos” e “Demitustras” são ótimos, e assim são os seus superlativos, mas “não aguento mais”. Essa foi a sua melhor frase, com ou sem sífilis. Essa é a minha melhor frase com essa pequena pedra que seguro ainda quente em minha mão.

Me lembro um dia, acho que era em Zagreb, durante um festival de teatro, que parei de me emocionar. Ouvi histórias de croatas e de servo-croatas baleados e feridos pelos recentes conflitos (melhor chamá-los de atrocidades), e me concentrei num garoto que contava que acabara de voltar de Dubrovnik, e aprendi a apreciar a simplicidade e a beleza com que as pessoas se despiam e caíam no mar, sabendo que estavam sendo vistas. Apesar de notar que uma gota de lágrima ou algo salgado entrava na minha boca, esse tipo de beleza sensual, sexual, esse tesão que as guerras provocam da mesma forma que um pulo n’água de um corpo lindo e nu.

Não tive escolha no Tennessee quando subi no ônibus de adolescentes negros porque quis, porque achava a segregação um absurdo, porque falei “fuck you, white trash!”, e fui vaiado pela primeira vez na minha vida! E com que orgulho. Aprendi cedo. Aprendi cedo a lidar com a autoestima quebrada: Ivan Serpa, meu mestre, rasgava meus desenhos ao meio na frente de todos. Todos viam e todos ouviam a seguinte frase: “Não se persegue uma obra de arte! Ouviu, garoto?”, e vai-se mais um rombo no desenho que tinha levado mais de uma semana para fazer para impressionar o Ivan, a turma de mais velhos, o Helio Oiticica e outros gênios que lá estavam no fundo de um lugar horrível em Copacabana, numa daquelas salas que dão para um vão central onde se jogava lixo… uma daquelas “galerias” antes do conceito “shopping” invadir o Brasil, e essas galerias eram o conteúdo de uma pequena vila, seus sapateiros, eletricistas, tapeceiros, costureiras etc. Ivan implantou em mim Marcel Duchamp, todos os modernistas, como se fosse a tortura chinesa, cada semana um pingo, um pingo pesado, e mais o resto da cultura toda. Não, não é de todo verdade. O Ziraldo me deu muito. Muito e muito mais. Ziraldo me abriu os olhos. Eu era uma criança e não tive tempo de brincar de… onde era aquilo?

Mas suspeito agora que oportunizaram a oportunidade: o World Trade Center – além da porrada dos aviões dos islâmicos radicais – pode ter sido dinamitado, suas vigas de ferro fortíssimas serradas em diagonal cautelosamente: é o que os demolidores profissionais chamam de “molten metal”. Eu vi essas vigas diagonalmente cortadas apontadas para cima, sobrando, enquanto multidões tentavam salvar outras tantas multidões, como em The Lost Ones, de Beckett. Não, não pode ser. Pare de delirar, Gerald. Pare de tentar ser um Nietzsche. Você leu demais. Você devorou muitos livros e, portanto, não sabe, como nunca soube, lidar com a realidade. Tudo para você parece sempre um conto, uma ficção, mas isso aqui é o Ground Zero, e não um conto de Kafka.

Quando olho para baixo, para as calçadas do mundo por onde ando, percebo suas falhas e projeto mapas, fronteiras e desenho nelas, nas falhas, países imaginários. Pequenas pedras surgem dessas falhas nas calçadas.  E com esses países, ou falhas, seus hinos.  Esses hinos, obviamente, não são originais, e sim algo como a Segunda Sinfonia de Mahler, a Ressurreição,  misturada a uns arranhões de Zeppelin, Hendrix ou dos Rolling Stones, as “Pedras Rolando”,  e uns murmúrios de letras de livros. Livros esses que abri e abro de vez em quando só para me certificar que eles existem mesmo. O que mais abro é Finnegans Wake, de Joyce, que é uma enorme viagem em si, especialmente quando a gente se pega em plena Zurique – lugar onde sempre estou e não sei por que (me faço essa pergunta e não sei respondê-la: a melhor resposta é talvez dizer que só estou lá por um dia encontrando o diretor artístico da ópera, mas já-já estou subindo para os Alpes, para Wengen, lá para o Eiger ou para o Jungfrau.)  O que eu quero dizer é que, de repente, se está na frente de uma plaquinha em que se lê: “aqui morou James Joyce”, assim como em Londres, em Primrose Hill, na Prince Albert Road, se não me engano, lá embaixo, esbarra-se com uma placa, “aqui morou Engels”. Essas sensações são incríveis, indescritíveis. Diferentes de estar sentado diante de Beckett. Ele era descritível. Bastante até. Mas estar sentado num monte de ruínas, com aqueles holofotes em Ground Zero era bastante indescritível. Até hoje, seis anos depois, procuro achar um termo para isso, mas não o encontro.

Hoje escrevo as minhas próprias peças e olho pra esse East River, de onde não consigo sair há décadas, seja de um lado ou de outro, de Brooklyn ou de Manhattan, e que não parece mudar, o que parece um paradoxo ou um enigma, porque rios sempre mudam (riverrun), na literatura portuguesa e irlandesa, como se fossem cavalos líquidos, uma equitação vertiginosa, uma sensação de tempo passando, física e podre, e um tanto quanto linda. Digo, assim deveriam ser os rios. Mas essa porra desse East River não muda em nada.  Às vezes olho por horas e nada. Nada nada nele. Nem um corpo boiando desde que Spalding Grey se suicidou nele em 2004.  Às vezes passa a barca do lixo que leva os nossos detritos e detratores (ai quem dera, Próspero!) para Staten Island. Mais ruínas.

Sabe, existe sim um momento onde tudo isso, todas essas andanças, todas essas comilanças, todas essas angústias e paranoias, levam a algo. O que é? Estranho. Não sei dizer ao certo. Mas é como se eu caísse em mim por alguns segundos. Por alguns segundos apenas. De novo, a tal lucidez. Por esses segundos tudo para. Eu tento, desesperadamente, segurar esse momento, como se ele fosse desaparecer. Parece que recebi meu primeiro sopro de vida. Quando? Não sei. Em algum ponto, ou em vários (porque foram vários em que senti a mesma coisa), um sopro de vida parecido com o que deve ter sido o berro primal ou o parto em si: não há como não dar um nome específico a isso: isso se chama drama.

Chega disso.

Maior enigma ainda é quando a cabeça está viajando a mil por hora dentro de um avião que está a não sei quantos quilômetros por hora. Rotas, mapas, computador e papéis espalhados por tudo que é lugar, atrapalhando até o vizinho oriental (I’m sorry, Sir, for disturbing you, but this is a play I’m writing and I have a deadline, so… papers and computers all out of order, all in a mess! Invading your space). Silêncio sepulcral nos olhos dele, assim como no meu pai vendo sua Berlim coalhada, assim como o silêncio nas mãos de Julian tocando nas minhas enquanto eu ia buscá-lo para os ensaios: ele na West End Avenue com 98, e o La MaMa cá embaixo na rua 4 entre Segunda Avenida e Bowery. Ou o silêncio quando Beckett resolvia abaixar a cabeça por um tempo (tempo enorme – horas, dias), alguns segundos apenas, e seu olhar um olhar vazio por alguns instantes. Suficientea para me deixar morto de medo daquele sobre quem eu sabia tudo, tudo e mais um pouco desde Imagination Dead Imagine até Malone Dies, até Stillness Still e mais aquilo que ele não queria que se soubesse sobre ele:

“Me diga, Mr. Thomas, o F ainda está comendo a H lá no East Village?” Sempre querendo saber quem estava comendo quem, eu procurava não dedurar, mas acabava dedurando, óbvio – quem não resiste a uma fofoca sexual com Samuel Beckett? – para o pavor daqueles como Tom Bishop e outros pretensiosos que queriam preservar – a qualquer custo – a imagem “séria e sisuda” de um velho e rancoroso irlandês no autoexílio. E com aquelas mil e três lindas linhas na testa!

Para quê?

Um autor que só fala em ruínas, mas com muito humor. Humor e “ disjecta” como ele mesmo chama, “pieces for nothing”, nunca esquecendo que aquela mão que eu toquei escreveu, sim, ela mesmo, aquela mão, de fato, escreveu de punho próprio o Finnegans Wake. Joyce ditou para ele, Beckett que anotava. Com muito humor. “He was a painter and an engraver. Where does that come from, Mr. Thomas?” Sem hesitar eu respondia: “Endgame, Mr. Beckett!”

Finnegans

O acordar e funeral final, a barbatana, aquilo que sobra para cima, os restos que ainda “stick up” das ruínas… essa é a onomatopeia de Finnegans Wake, mas também é o que eu sentia sentado no Ground Zero ou olhando o outro lado de Berlim, ou pensava em Sri Lanka ou em New Orleans engolida por um tsunami ou pelo Katrina. “Cadê o Arthur C. Clarke? Alguém já foi procurar por ele?”, essa era a minha preocupação egoísta, ligando para o programa do Anderson Cooper, da CNN, tentando fazer chegar a ele a mensagem de que lá em Sri Lanka morava um grande e importante autor.

Chega disso!

“Como assim, chega disso?”, uma voz distante, de um passado distante me pergunta. Uma voz vinda de Auschwitz, uma voz vinda de uma foto de um familiar exterminado lá: olho no olho no meu próprio passado, digo, no olho da foto do meu próprio antepassado   e nada sinto. “Que judeu de merda tu és, Sr. Gerald! Estás aqui no Pavilhão 17, olhando essa pilha de sapatos e cabelos e óculos e os catálogos, e consegues identificar teus parentes e nada sentes?” Ruínas. Um monte de ruínas organizadas em cubículos de vidro e madeira com plaquinhas. Para que? Para que a História não se repita? Não me façam rir. É como falar em ética hoje em dia: um toll free number chamado dial-ética está em perigo.

Passando o portão onde – até hoje os poloneses mantêm a metálica “inscriptia” art-nouveau Arbeit Macht Frei – só pensei em forrar a barriga: e logo com o quê? Eu só tinha duas opções: uma barraquinha de sorvetes e outra com hot dogs. Nada kosher, mas estava pouco me lixando. O elenco inteiro da ópera inacabada Zaide, de Mozart, estava lá comigo derretido em prantos, lágrimas de crocodilo (ninguém era judeu, todos vindo daqui, de Nova York para ensaiar com Luciano Berio essa miséria de Mozart em Cracóvia: olha que prato cheio para o Sergio Porto e seu febeapá!), e eu queria comer um cachorro quente e assim o fiz. Sim, depois de ver os membros da minha família exterminados, me deu fome. Fazer o quê?

Indignado comigo, o elenco ficou com cara de ponto de interrogação, assim como eu fiquei com o convite do Julian, assim como fiquei quando vi Beckett pela primeira vez, ou quando Haroldo de Campos escreveu páginas a respeito do meu trabalho: como diretor, autor, sei lá, sempre tenho que dizer alguma coisa. Não sei muito bem se disse antes ou depois de meter os dentes no cachorro quente! E que cachorro quente! Convulsionei.

“Wer fremde Sprachen nicht Kennt, weiss nichts von seiner eigener”: Pronto, devo ter murmurado algo em “goethesprache” para deixá-los ainda mais de queixo aberto.

“Quem não conhece línguas estrangeiras nada sabe sobre sua própria”, é linguagoethe! Ou dollargoethe, ou eurogoethe ou, na época, marcogoethe ou pontogoethe, ponto zero, Ground Zero: Auschwitz: para calar aqueles que não calam na hora certa, como eu.

Mais uma vez, em Auschwitz, as ruínas estavam lá. Mas eu estava de pé, com um cachorro quente na mão, curiosamente pensando em Haroldo de Campos me falando sobre “Deus e o diabo na terra de Fausto”. Mas logo ali? Logo do lado de fora do maior campo de concentração da História? Bem, não visitei os gulags na Sibéria. Não visitei o Camboja de Pol-Pot. A mostarda estava ardida demais. Aqui estávamos perto de Katovice e das minas de sal subterrâneas: 400 quilômetros de minas de sal, uma cidade inteira esculpida, com catedral e tudo. Uma loucura essa Polônia de Polonius! Ora alemã, ora Francesa, ora Russa, ora… Polonesa, um dos poucos umbigos da Europa. A Polônia de Copérnico. Copérnico, aquele que olhava para as estrelas, galáxias, para o universo, aquele universo sobre o qual esse mesmo Haroldo me falava tanto e com tanta rapidez, uma rapidez às vezes difícil de acompanhar, de…

Eu, uma pedra na mão, mas nenhum mandamento, nenhuma ideia, somente um nó na garganta, esperando nenhum Godot ou nenhum Moisés, ou sequer um semiólogo.

Não era 11 ou 12 de setembro, mas dessa vez com uma pedra histórica entalada na minha garganta. Ninguém do elenco, tenores, barítonos, sopranos, ninguém sabia nada – de verdade – sobre as minas de sal de Katovice, sobre os campos de concentração, sobre os regimes totalitaristas, seja a ditadura de Pinochet ou de Videla, ou o Golpe de 64 no Brasil, ou como  Stálin mandou o Siqueiros matar Trotsky com um machado na cabeça, seja sobre o que já rolava na época (1995) em Sarajevo e na Croácia e em Kosovo.

Era Slobodan Milosevic, hoje um presunto em Haia. Tudo em nome de limpeza étnica. Seres humanos se livrando de uma pele que não gostam, ou que repugnam, ou se olhando no espelho e se livrando de algo a respeito de si mesmo que os repugna: sempre a mesma coisa.

É por causa desse princípio imoral que mentem e mentem e mentem e mentem para nós todos os dias. Mas a pergunta me intriga a tal ponto às vezes que não consigo mais escrever ou sair para dirigir meu elenco: até o poder tem que ter seus limites, porque até Dick Cheney tem que fazer um exame de próstata e levar um dedo no cu, ou não? Como é o coco que a Rainha Elizabeth faz? É de manhã quando acorda? É de tarde? Ela sente a dor de barriga no meio de uma reunião com presidentes de outros paises, ou quando está na carruagem de ouro andando pela Mall e é induzida quando vê os cavalos “reais” cagando sem parar na frente dela? Como funciona o sistema intestinal dela? E como funcionou naquela madrugada quando ela recebeu a notícia de que a Princesa Diana havia morrido naquele acidente em Paris?

Talvez o mundo sempre tenha sido desse jeito porque esses extremistas que praticam a Guerra só foram levados a isso porque não conseguem de fato trepar, ou melhor, trepar usando suas fantasias sexuais com toda a liberdade a que têm direito. Os islâmicos radicais ou os judeus hassídicos ou cristãos evangélicos, ou qualquer religião que precise berrar como um animal e que cobre suas mulheres e as tratam feito eu-não-femismos: pare, Sr. Gerald, você já está divagando de novo!

Chega disso.

Preciso me lembrar de como é estar sentado no embankment do rio  Thames, lá em Putney, na Londres que é só meu, todo ele meu, quase debaixo da Putney Bridge… vendo os barcos passarem, vendo alguns junkies se picando, vendo alguns irlandeses bêbados dormindo homeless, homeless, homelessness, lessness menos ainda que lessness. Comentei isso com Beckett décadas depois, ele nada falou.  Essa Londres que é só minha é a Londres de Shakespeare, o solilóquio de Próspero em A Tempestade que não se dá sequer na Inglaterra, mas na ilha de Sycorax, onde o ex-Duque de Milão solta seu Ariel, manda o “livro das magias” à merda e perdoa seus detratores, delatores, perdoa seus críticos. Eu jamais faria isso. Não tenho esse tipo de maturidade, de generosidade e me pergunto por quê!

Se A Tempestade fosse minha última peça (e eu já a montei tantas vezes e me identifico tanto com ela, como pode, meu deus?), eu daria para ela um final trágico, com sangue. Mas a beleza dela reside justamente no fato do Shakespeare ter olhado para o Renascentismo, para o futuro de deus no Homem e em Leonardo, e ter tido esperanças. Sentado em Ground Zero ou em pé, com meu pain a plataforma que olha de uma Berlin para outra, não tenho esperanças. Hoje, quando escrevo, com o Iraque do jeito que está, e prestes a invadirmos o Irã, menos esperanças ainda.

Na década de sessenta, quando adolescente (casei em Londres muito jovem), eu costumava a fazer longas, muito longas caminhadas. Algo que eu herdei do Rio, onde eu andava do final do Leblon até o Museu de Arte Moderna, pela orla, sem problemas: era para ver um filme na cinemateca ou ter aulas com o Ivan Serpa. Ou aqui em Nova York, onde se anda, anda, anda. Só no “arrego” final, depois de andar do SoHo (na época ainda um deserto de pequenas fábricas de pregos e caixas de papelão) até o Harlem, é que eu pensava em pegar um “checker” cab, daqueles “tratores” lindos, assim como os táxis londrinos são lindos. Tão lindos os de Londres, que assim que tive algum dinheiro, comprei um, desativado. Me divertia com as pessoas fazendo sinal para que eu parasse, já que eu era um “daqueles pretos” como os outros. De longe não havia diferença, somente uma plaquinha branca atrás que habilitava ou não o táxi em si e mantinha distância entre a verdade e a ilusão. Era um Winchester diesel que, ao subir o Haverstock Hill, em Belsize Park, por exemplo, sofria.

Eu havia caminhado de – sei lá onde – de Southampton Street em Covent Garden, onde ficava a sede da Amnesty International, ate Putney, umas belas seis milhas. E sempre observava os tijolos vermelhos ou marrons ou terracota das casas por onde eu passava. Dependendo da época em que foram construídas essas pedras, esses tijolos, tinham uma beleza muito especial e sua maneira de maçônica de serem colocados, gentilmente, uns sobre os outros, era lindo, era, de certa forma calmante.

Como pode algo assim ser destruído? Minha obsessão em preservar é doentia.  Fogo, brigadas de incêndio, o  incêndio em si, terrorismo, esse mega incêndio que consome agora o sul da Califórnia é algo que me deixa doente. Com água eu ainda consigo lidar, mas fogo é algo que… No meio da King’s Road existe um lugar chamado “world’s end”, o “fim do mundo”, onde os tijolos, aliás, não são tão bonitos. Muitas folhas no chão, sempre, não importa a época do ano. Nem precisa ser outono.

Não sei porque, com a pedra na mão, sentado ali no rubble do World Trade Center, me vinha à cabeça aquela curva da King’s Road em Londres, o “world’s end”, me vinha à cabeça o arco “Arbeit Macht Frei”, me vinha à cabeça o meu pai olhando a sua Berlin dividida e sem nada tendo a dizer, como o personagem de Ohio Impromptu de Beckett, esse world’s end representa e interpreta algo que Goethe, ainda prefeito de Weimar, quis dizer e não pode, ou seja: “pouco resta a ser dito”.

E agora, com tudo isso e mais na cabeça, penso em George Bush como um Inquisidor, um real raivoso evangélico que em seus aforismos não faz alegorias, incapaz de fazer fantasias, é um militante religioso daquilo que representa o seu Sol, seu solstício, um mito do zodíaco transformado em homem e transformado em mito de novo, pois homem não tem ressureição. E nessa cruzada capitalista pelo poder do petróleo e pelo domínio, ele deve achar válido o sacrifício de vidas humanas, assim como em todas as religiões as vidas humanas não valem nada, frente à vida desse que é a personificação do sol, o filho de deus, a antropomorfização de um símbolo numa catarse maior e demiúrgica ou demagoga, a reflexão de um ser superior que espelha as constelações e seus discípulos e é sacrificado por suas profecias. Pobre Jesus!

Quando não penso em nada, penso em Goethe, não no escritor, não no poeta e não no cientista, mas no modernista, naquele que começou a romper com seu passado. Não, isso não é verdade. Quando não penso em nada, não penso em nada e pronto. Que absurdo dizer que penso em Goethe! Que arrogância! Mas é que, de certa forma, meu pai lia Goethe para mim, quando eu era algo antes de criança e brincava nas ruínas daquilo que eram os sons do “holocausto na cabeça”, as memórias que a família trouxe e que nos acompanharam por tudo que é lugar. Essa linguagoethe me era cantada sim, e de alguma forma isso ficou aqui dentro como música. Se destruí o meu passado, ou fiz meu pacto com o futuro, ou com o meu palco por causa disso, bem, isso é para as pedras ou pros psicanalistas e acadêmicos decidirem.

Só sei que nunca serei um Goethe. Nunca mais teremos um Goethe. Hoje os inventores são cientistas anônimos, e os intelectuais são somente repetidores, acreditem. Goethe inventou ou introduziu a Einbahnstrasse, a rua de mão única, o que veio a ter um efeito urbanístico no mundo incrível: viramos um enorme quarteirão, o conceito de cidade moderna. E veio a Bauhaus, Gropius com seus quarteirões verticais onde moramos até hoje (e daqui do oitavo andar o East River me parece morto mesmo!), nessas gavetas impessoais e imorais do ponto da claustrofobia e neurose, como se prisão fosse a penalidade máxima e como se já não morássemos nela e pagássemos tão caro por ela.

Pedras na mão, ou obstáculos que chutamos por aí sem se dar conta. Olhar para cima, às vezes, nos faz bem. Existe um céu, quando não há incêndio ou alguma fumaça ou nuvem nos impedindo a visão do céu claro ou do universo. Mas essa visão pode nos levar à morte instantânea! Eu, pelo menos, tomo cuidado.

Não, nada disso me passava na cabeça enquanto estava sentado debaixo da Putney Bridge. Mas me passavam os nomes dos presos políticos do mundo, esses que eu tinha que decorar para reunião da Amnesty International do dia seguinte. Sim, ainda estamos nos anos 70 e Yehudi Menuhin está prestes a apresentar o Nobel da Paz que a Amnesty ganhou em Oslo e estamos todos em pleno Royal Albert Hall.

Menuhin vem ao microfone, emocionado e anuncia o premio. Todos na plateia aos prantos. Menuhin também. Ele se recupera da emoção, pega o arco e violino e retoma um movimento da Nona Sinfonia de Beethoven, a que menos gosto, essa que virou o hino da Europa Unida agora. Mas é a mais popular das sinfonias, funciona como um Julio Iglesias para o povo, e o povo no Albert Hall assim reagia. Eu não sabia se vomitava ou celebrava. Por que um premio tão merecido sempre tem que terminar em bregalha?

Anos passam. Coloco minha obra de pé. Viajo mais não sei a quantos paises? Quantos? Uns 16, contando com as viagens pela Amnesty e o início da minha carreira de dramaturgo e ilustrador. Não sei. Perdi as contas e não contabilizo mais. Quando o avião decola, geralmente estou anotando algo (um artigo como esse ou um trecho para uma outra peça qualquer, ou um email para alguém, porque no fundo somos o que mesmo? Sim, seres em busca de outros seres em total descompasso e sempre na culpa, sempre na culpa, sempre tentando recuperar o tempo perdido, sempre tentando explicar assim “olha aqui querida, mil perdões por não ter te respondido antes mas…”

O que quero dizer é que estou, ou melhor, me encontro sempre assim: sentado, ou de cócoras, seja com uma pedra na mão ou jogando pedrinhas ou olhando um monte de ruínas de um prédio colapsado. E a pergunta perdura. E daí? Se construí uma obra teatral, sempre volto para o ponto de partida que é HOJE, que é o NADA, que é esse vazio enorme aqui em Nova York, onde me falta TUDO… onde não tomei precauções para ter água mineral suficiente, onde estou em estado de euforia, ansiedade e depressão e, como cresci e fui educado com o holocausto na cabeça, nada mais me resta a dizer, senão um muito obrigado por tudo que tive a chance de enxergar através dessa enorme cegueira que sou eu mesmo, através dessa enorme cegueira que são minhas obsessões e que me obrigam, como se assim fosse, a colocar no palco, uma paródia, sobre o porque dos silêncios nas peças de Harold Pinter.

Meu dialogo dramatúrgico está, de certa forma, reduzido a um objeto de desejo, melhor dizendo, a uma maquina do desejo Proustiana (perturbada, num passado ou tempo perdido e irrecuperável) onde o cisne (Swann in Love) grudado ali na parede de um camarim de uma “Terra em Trânsito” (essa última peça que eu escrevi e encenei),  conversa com sua musa, uma soprano que espera o final do terceiro ato de Tristan und Isolde para entrar em cena para cantar e viver o seu Liebestod, seu último ato, sua última ária.

Como já encenei essa ópera várias vezes, sei que ela é, de certa forma, o Wagner em pessoa, assim como A Tempestade é Shakespeare em pessoa, olhando para o futuro, e não terminando em sangue. Em Tempestade, Shakespeare pede aplausos para a sua própria libertação daquela ilha/palco/prisão. Wagner, em Tristan, me parece não ver futuro a não ser através da morte dentro do amor e vice versa. Minha “Terra em Trânsito” propõe uma profusão de ideias, uma contagem regressiva e urgente de notícias do século XX, assim como alguém que já viveu os últimos momentos antes da morte os reconta. Mas enquanto ELA é o objeto de desejo DELE (o cisne), ele está ali imóvel e nada pode fazer, assim como Winnie está enfiada num monte de areia em Happy Days de Beckett. Isso acaba dando num efeito oposto e sádico (de Sade mesmo) onde ELA acaba alimentando aquele que mais a admira com migalhas velhas de biscoito ou “pão cristão”, para que ele, o cisne, seja enviado a Strasbourg pra virar patê de fígado, ou melhor, uma “pasta de si mesmo”, assim como todos nós viramos uma miragem de nós mesmos: foie gras – uma invenção grotesca e comestível que engolimos e consideramos uma delicatessen!

E num diálogo entre ELA e o CISNE num trecho de “Terra em Trânsito”, eu pinto com o Sr. Haroldo Pinto, português, judeu de nascimento, mas hoje um conceituado e chatíssimo autor chamado Harold Pinter:

“Antes de te mandar pra Strasbourg eu ainda tenho que mandar fazer um exame das tuas fezes e  urina pra ver se você não está com essa gripe aviária. Esse teu xixi não anda me cheirando nada bem! Também com tanto suplemento. A culpa é minha. Tudo bem, a culpa é minha, é um tal de te dar antioxidante, vitamina E, C, B12, Pancreatina, lactase, Zinco quelado, Boro quelado, amilase, Manganês, Magnésio, Selênio, Cálcio, Ferro, própolis, dmae… ufa! Não é à toa que… Você está me cheirando a uma peça de Harold Pinter. (Pulo Grande. Para a plateia) Gente! Entendi tudo! Os silêncios na peça de Harold Pinter: não são problemas emocionais, não são pausas que catabolizam uma emoção que se ‘puxa’ pra dentro, uma introversão, UMA COISA INTRINSICAMENTE BRITÂNICA, UMA ESPÉCIE DE SÍNDROME DO BLOQUEAMENTO DA PASSAGEM DOS SENTIMENTOS PELOS NEUROTRANSMISSORES IMPEDINDO A COMUNICAÇÃO ENTRE CÉREBRO E CORAÇÃO E, PORTANTO, REPRIMINDO TODO  PROCESSO DE EXPRESSÃO PELAS VIAS EMOCIONAIS, OU MELHOR, A NÃO EXPRESSAO PELAS VIAS EMOCIONAIS,  PORTANTO, CRIANDO TODA UMA SOCIEDADE FUNDAMENTADA NA CULTURA DO NÃO-DITO, OU MELHOR, DO DESDITO, OU, MELHOR AINDA, DO MAL-DITO. SIM, NÃO, QUER DIZER, nada disso. É que um personagem está tentando desvendar o cheiro do outro, já que todos ali estão super medicados. Vindos de um National Health Service (Serviço Nacional de Saúde) em total decadência, os médicos começaram a receitar qualquer negócio e estão, os aristocratas, digo, a tomar qualquer tipo de solução, mineral ou não mineral, e ficam todos num silêncio (pausa) sepulcral tentando entender o que o outro está tomando, já que na Inglaterra não se tem essa abertura pra perguntar assim: ‘Hey, Joe, o que é que você está tomando… hoje, now, I mean, today?’”

Chega disso!!!

Essa voz é agora (espero), é definitiva. Ficar amolando, chateando outros autores quando nem eu mesmo me resolvi ainda. O que é isso, minha gente?

O autor, o encenador, esse  artista aqui, enfim, é o eterno efêmero, enfermo. Sempre se despede de tudo, nada lhe pertence. É o tal do Weltschmertz. Dor do mundo. Portanto, andar pelo mundo significa andar pela dor. Ah, agora me entendi melhor. Andar pelo mundo significa andar pela dor. Uau!

É como encarar a mulher que você ama nos olhos, depois de dias tão intensos, promessas tão intensas, e ter que lhe dizer um simples “adeus, te cuida. Me promete que você vai se cuidar”.

Como conviver com a despedida? Com essa coisa de “não se ver mais”? Essa sensação de se estar “espalhado” por tudo que é lugar, com promessas de amor e devoção é, desesperadora.

Sempre irei tentar colocar uma âncora em algum lugar, ou melhor, me ancorar em alguém ou em vários alguéns, mas a solidão é algo insuportável, assim como um palco vazio, ou uma tela em branco (mesmo o branco sobre o branco de Joseph Albers), ou uma página em branco, ou duas torres brancas que predominavam no meu skyline, tombado, no seu sentido mais perverso. Não, âncora nenhuma não. O palco estará vazio ainda ou redundante, até que se resolva essa loucura que é a finitude da vida. E ela, a morte, dá margem a qualquer tipo de pacto, seja ele qual for, porque, sei lá, não quero ser Bergman, não quero estar no lugar do Zé do Caixão! Quero andar em cima da minha dor, mas ainda assim tocando o samba que tão bem sei tocar. Duvida? Pergunte ao Ivo Meirelles. Toco, e com muito orgulho, todos os instrumentos, com as duas mãos, na superfície de uma mesa como poucos cariocas sabem batucar!

A despedida é algo com a qual – nessas décadas todas – ainda não aprendi a lidar. Seja dizer “adeus” a uma pessoa ou a uma cidade, seja a um cartoon de Steinberg ou a uma tela de Rothko que se suicidou ao olhar o que ele mesmo pintou.

Roxo sobre Lilás e tons de violeta e… o amarelo que Borges via em sua cegueira enquanto liam pra ele Coleridge na Biblioteca Nacional de Buenos Aires. Sim, aquele Borges que veio a ser caricaturado, não por Steinberg mas por Humberto Eco, em “O Nome da Rosa”, o bibliotecário cego com seu assistente corcunda quase incendiado. Borges era fanático pelo Zodíaco. Cortázar também era. Escreveu “Prosa ao Observatório”, um texto lindo e livre, como um solo de jazz, de Charlie Parker, lá das ruínas da cidade de Jaipur, na Índia, um enorme observatório, um gigante, assim como o próprio Cortázar era um homem que não parava de crescer e não conseguia nunca se despedir de seus exilados políticos quando trabalhava comigo no Tribunal Russell. Chorava e chorava muito. Cada um chora seus mortos. Eu chorei os meus. Muitos deles.

Faz tempo. 23 anos que meu pai morreu. Fui à luta. Numa dessas idas e vindas rápidas entre Nova York e Rio ou São Paulo, sendo que três dias foram em Stuttgart pra supervisionar “Perseo e Andromeda”, uma opera de Salvatore Sciarrino que estava sendo “ressuscitada”, mais ou menos como se ressuscita no Zodíaco ou na Bíblia um mito para pegar o seu dinheiro ou para te colocar em regimes de guerreiros, eu resolvi criar um banquete e convidar todos os meus “amigos” do British Museum Reading Room e da farra na vida em geral, desde Kant até Descartes, desde Arthur Koestler até Ivo Meirelles, desde Karl Marx até David Letterman até, sei lá. Estavam todos lá.

Minto. Faltavam Hunter Thompson e seu convidado especial, recém-falecido, o jornalista televisivo Ed Bradley, do 60 Minutes. Thompson havia telefonado de Montana dizendo que seu avião estava atrasado. E Faltava David Mamet, que, aliás, jamais havia confirmado presença, assim como Woody Allen não havia confirmado presença, assim como tantos outros eu havia convidado, ou achava que havia convidado: Frank Gehry por exemplo. Mas… nada. Nada deles aparecerem, então: não estavam “todos” lá. Uma parte deles estava lá. Só uma parte.

Cabisbaixos, maltrapilhos, mas lá. Wittgenstein chegou no meio do jantar ainda escrevendo uma carta ou um aforismo e nem se deu conta de nada. Na cabeça dele, ele nem saiu de Viena. Quem me deu o toque foi o Stephen Toulmin. Falou assim “Olha lá o Wittgenstein… andando por ali, pelos corredores, pegando uma garrafa e não dando a mínima pra nós.” Notei. Notei e fiquei ofendido.

Schiller estava ofendido porque todos estavam prestando muita atenção em Goethe, digo, muita atenção mesmo, já que Goethe sempre foi a “estrela histórica”. É, existe isso. Digo, essa coisa de estrela histórica como Beethoven, como Chaplin, como Wagner ou como Lenin. E… Chega disso! Ih, voltou essa voz com esse “chega disso”.

Minto. Minto para não ter que dizer que digo a verdade. “Quem não conhece culturas estrangeiras não entende a sua própria”. Pronto! Me apropriei de Goethe. Estendi língua para cultura, já que uma lambe a outra, já que não há diferenças mesmo. Já que o choque cultural é o grande responsável pelos desentendimentos, pelas guerrinhas regionais, as emboscadas, as pegadinhas. Não, não vou entrar em como e por que se faz uma enorme grande Guerra, existe gente qualificada pra isso.

Minto brabamente. Sou qualificado para isso. Mas me dá uma sensação estranha de estar preaching, e odeio isso. Não tenho essa obrigação didática, aliás, quero correr dela, o mais rápido possível, riverrun, algum rio, seja o Rhein, seja o Thames, seja esse East River aqui embaixo de mim que contamina a água da minha torneira, uma água turva e morta. Ah, esse rio… turvo e morto, riverrdead, or riverdeadhead going to bed.

Essas caminhadas pelo mundo não me levaram à toa por aí. Levaram meu teatro: o teatro do qual sou autor. Se me sinto confortável com isso? Sendo ouvido em alemão, em dinamarquês, em italiano, em servo-croata, em russo em sei lá o quê… tudo porque eu cresci e chorei junto com meus pais tantos fracassos e tantas mentiras de uma família em pedaços, em ruínas, nunca tendo exatamente um rumo certo, nunca tendo exatamente uma certeza de que “eles” não iriam marchar contra nós no dia seguinte apontando o dedo no nosso nariz dizendo “amanhã estaremos de volta, uniformizados e vocês serão cinzas”. Sim ouvi isso durante a infância inteira. Ouvi isso vendo as mãos tremendo, goles de não sei o que descendo goelas abaixo, não sei quantos foram os paises. Ouvi isso durante aquela noite inteira de 11 a 12 de setembro de 2001. Mas e agora?

Talvez por esse motivo a minha pressa louca em atravessar a Williamsburg Bridge e atravessar as barreiras militares e policiais pra conseguir um pedacinho de detrito, e sentar no chão de poeira, de rubble, de cinzas, pedaços de corpos fervendo naquele instante ainda, uma cidade zumbi: um pedaço de pedra na mão, assim como segurei um pedaço do Muro de Berlim na mão por anos, e hoje ele está plastificado num prato, parte da obra de arte de um escultor dinamarquês.  Muros, prédios, obstáculos, fumaça, cortinas, armários, coisas escondidas, tudo parte de uma geração que enfrentou, assim como eu enfrentei, as filas de carro em Checkpoint Charlie ou em Bahnhof Friedrichstrasse, tentando ir para o lado oriental de Berlin. Sentado com um ator de pequeno porte do Berliner Ensemble (muitos anos antes do muro cair) tudo que ele queria, era se esconder dentro do meu carro antes que eu atingisse o limite de horário: 23:59 em ponto. Hora da saída obrigatória da DDR, da Alemanha Oriental. E… liberdade! Liberdade? A liberdade dos produtos. A liberdade do consumo!  Que loucura! Em três minutos, o mundo mudava três décadas e saía do regime de Honecker com seus peixes podres dos supermercados “marxistas” (que piada) e voava-se  diretamente  pro grossen laden KDW, e seu último andar luxuosíssimo onde se come de tudo. Tudo, de Bocuse ou uma carambola até Wocluse, aquele lugar misterioso que Didi e Estragon debatem em Godot.

Quando, numa coletiva de imprensa para o Wiener Festwochen em 89, num café repleto de jornal, TV e o escambau, percebi que eu teria uma “voz” nessas áustrias e alemanhas e que uma piada do tipo “vocês se importam se minha família se juntar a mim agora?”. Explico: a cena era eu. Eu na frente dos microfones exibindo um cinzeiro cheio, transbordando com cinzas. Nenhuma graça, nenhum sorriso. Eu ri. Meu deus, depois de décadas, será que não podemos rir um pouco disso?

Teve que intervir um certo Gerd Gliewe, da Abendzeitung de Munique, para fazer as pazes entre eu e o passado das germânias, essas germânias sobre as quais Heiner Mueller escreve.

“Das Universum im Kleinen Format” foi a matéria! E que matéria!

Parece que deu certo. Proponho um certo humor nessa questão do nazismo nas Alemanhas até agora não tão unidas, afinal, a geração atual realmente nada tem a ver com isso. Ou será que tem? Os skinheads me esperavam do lado de fora em Weimar durante o triste episodio do Breve Interrupção do Inferno (A Brief Interruption of Hell). Também me esperaram em frente à saída dos artistas na Ópera de Graz, quando encenei “Moses und Aron”, de Arnold Schoenberg. Sim, eles existem, os skinheads, e te metem garrafas na nuca como se estivessem vindo de um cartoon mórbido de Crumb. Botas largas demais, calças curtas demais, e crânios pequenos, seus physique du role dizem a que vieram: a nada. Mais que isso – até hoje, não fazem, só Berram. A banalização do mal? Não, somente a banalização do medo! Eichman puro!

Foram tantos os países e tantas as línguas. E para quê? Juro que não sei responder. Se houvesse um ato triunfal no final de tudo, algo heróico, eu seria o primeiro a querer dizê-lo. No muro das lamentações, em Jerusalém, me dei conta, talvez pela primeira vez na vida, de que eu era capaz de ouvir o canto dos passarinhos. Achei irritante. Mais irritante ainda, a Mesquita que fica do lado de lá, irradiando pelo alto falante, cantos islâmicos para irritar os passarinhos e os judeus ortodoxos que ali se curvam e, num movimento mântrico, não param de se mexer, de trás para frente, de frente para trás.  Ali me dei conta de que todas as pedras que segurei esses anos todos estavam todas lá, amontoadas, até aquelas pedras etruscas em que me segurei emocionalmente enquanto morei na Toscana, no ano em que me enfiei, casado com uma mulher e um teatro, no centro belíssimo da Itália. Todas as pedras numa só pedra. Não é metáfora, principalmente porque todas aquelas pedras estão, de certa maneira seguras pela mega-pedra de Herodes, aquele mistério pesado, enigmático, emblemático, tal qual as pirâmides, só que no subterrâneo do muro das lamentações.  Isso, em Jerusalém, aconteceu quatro meses antes dos ataques de 11 de setembro de 2001.  Eu ainda achava bastante estranho ver um policial portando uma Uzi, mesmo tendo subido a Mangueira aos 13 anos, junto com Helio Oiticica, onde vi outras semiautomáticas mas que, juro, não me impressionaram tanto.

Os tempos eram outros, e as ruínas ainda não estavam tão deterioradas quando se brincava de ser menino.

Mas e agora? Perdi de vez a inocência, demoli tudo. Eu e nós mesmos. E em meu lugar? Pedaços de mosaico que não consigo mais reconhecer como sendo meus. Procuro loucamente quem sou e/ou como somos. Não tenho respostas. Nossas identidades? Um caos. Estamos espalhados e refletidos, como esquizofrênicos, nós, eu, você, em cérebros de outros, como se não habitássemos por inteiro aqui dentro. Como se quiséssemos fazer alguma diferença no mundo de hoje, como se nosso berro não fosse aquele de Munch, o silencioso, como se ainda tivéssemos o poder do protesto de Dylan, de Abbey Hoffman, de Hendrix, mas estamos soltos e nossas mentes com plugs de Ipods como se fossem rolhas para não deixar escapar pelos ouvidos o que nossas bocas querem berrar. E se quiséssemos berrar, qual som sairia, já que nada temos mais de original para dizer, nada temos mais de inteligível para berrar? Todos os editoriais são iguais, todas as lamúrias são iguais, nossa poética está na seca, assim como o aquecimento global. Parece que fomos achar conforto num chat com um anônimo através do Skype com câmera, na certeza de que podemos clicar “terminate” e acabou. Mas acabou? Nossas solidões estão todas medicadas. Não há ninguém desacompanhado de um discurso horrivelmente triste, mesmo aqueles com um sorriso estampado na cara ou com sessão marcada com seu psicanalista ou com seu traficante ou em seu quarto escuro e com sua medicação legal.

Somente ruínas. Não as aceitamos ainda, mas se nos olharmos do alto, somo ruínas vestidas, alguns bem, alguns mal, alguns de Prada outros de Commes des Garçons e outros de pé no chão mesmo, tudo rasgado. Mas ruínas mesmo assim. Sinal de um tempo de tremenda mudança. Sou a favor, não me interpretem mal, mas a solidão da mudança significa que aquela casa não estará mais lá, os móveis serão queimados, como na Krystalnacht, quando as lojas dos judeus foram quebradas ou as lojas dos islâmicos foram metralhadas depois de 11 de setembro e … tudo por quê?

Porque uma vez eu abri o armário quando menino e brincava de fazer teatro com as poucas coisas que tinha, com medo da rua: medo das automóveis cujos pneus, sem querer, jogavam pedras para lá e para cá e machucavam pessoas, me machucavam. Pedras, mendigas, armários barrocos onde eu achei meu “drama” por pura covardia, mas tudo isso deve estar lá onde eu brincava quando menino.

Mas onde será que foi aquilo?

Gerald Thomas

New York – October 2007

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