O governo Wilson Witzel anunciou já há alguns meses que deve fazer investimentos para lá de 1,5 bilhão de reais em um amplo projeto de urbanização da Rocinha. Segundo o Governador mais de 7 mil pessoas serão retiradas de áreas de risco e realocadas na própria Rocinha, que ainda receberá um grande boulevard. O projeto não foi apresentado com detalhes ainda, mas segundo informações do próprio governador deve se inspirar no modelo de urbanização da Villa 31, uma favela na capital Argentina, Buenos Aires.
Depois de gastar mais de 1 bilhão de reais no Complexo do
Alemão sem mudar substancialmente nada nos governos Cabral e Pezão agora
estamos às vésperas de ter um novo governador cometendo os mesmos erros. No
final uma coisa é certa, teremos gastado mais 1 bilhão em um projeto que
simplesmente não tem como dar certo. Não por falta de vontade do Governador,
por falta de ideias, falta de dinheiro. E sim pela pelas impossibilidades
físicas e operacionais de se criar um modelo de habitação popular de qualidade
que seja sustentável a médio e longo prazo sem realocação física de milhares de
pessoas para áreas planejadas desde o início para suprir moradias e serviços
públicos de qualidade de forma sustentável. Uma nota, sustentabilidade aqui não
se refere simplesmente a questões ambientais e sim ao conceito mais amplo. Ou
seja, engloba também sustentabilidade financeira e social além das questões
ambientais.
O que se está fazendo mais uma vez é buscar fora do Brasil
alguma inspiração para urbanizar uma favela. No caso do Complexo do Alemão se
buscou inspiração em Medellín, Colômbia. Teleféricos trariam um grande ganho de
mobilidade e junto com alguns outros investimentos a realidade socioeconômica
da população teria um salto. Na prática o Teleférico trouxe benefícios
limitados à população a um altíssimo custo e não houve a prometida
transformação social e econômica. Tudo continuou mais ou menos na mesma. Agora
busca-se inspiração em um projeto de reurbanização da Villa 31 em Buenos Aires,
projeto que é tocado junto ao BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).
Rocinha vs. Villa 31
Vamos as questões mais óbvias primeiro. Buscar inspiração no
projeto de urbanização da Villa 31 em Buenos Aires faz sentido para se falar em
urbanização da Rocinha? A Villa 31 tem aproximadamente 40 mil habitantes em uma
área PLANA de 485mil metros quadrados. A Rocinha em comparação estima-se que
tenha mais de 120 mil habitantes em uma área de 790 mil metros quadrados que em
quase toda sua totalidade fica em uma encosta íngreme. Isso quer dizer que a
Rocinha tem uma densidade populacional que é quase o DOBRO da favela Argentina,
em uma topografia muito mais complicada.
Uma outra diferença fundamental é que ao redor da Villa 31 havia duas áreas industriais, depósitos de contêineres de empresas de transporte, que estão sendo utilizados para o projeto de urbanização da Favela. Estas duas áreas somadas totalizam mais de 117 mil metros quadrados. Ou seja, uma área de quase 20% da favela estava disponível ao lado da mesma para o processo de urbanização. No caso da Rocinha há virtualmente 0 metros quadrados disponíveis para esse processo.
Ademais, as construções na Villa 31 são geralmente sobrados
de 2 a 4 pavimentos e há uma rede de ruas, que apesar de não serem largas
permitem a passagem de veículos e formam uma rede de vias. Estas vias são
importantes para a implantação e operação de todos os serviços públicos básicos
(Agua, Saneamento, Energia, Internet, Coleta de lixo, etc). Na Rocinha por
outro lado existem verdadeiros prédios, chegando um deles a ter 11 andares. Há
mais de 700 construções com 5 ou mais pavimentos. E a rede viária se restringe
basicamente a uma via de mão dupla que atravessa a Favela em um zig-zag,
serpenteando morro acima e morro abaixo. As poucas vias auxiliares são vielas
estreitas e ruas sem saída. A maioria das habitações somente pode ser acessada
através de vielas estreitas por onde mal passa uma moto. Prover serviços
básicos em uma realidade destas é um verdadeiro pesadelo, e todos os custos
para prover esses serviços acabam sendo muito mais elevados que em uma área
planejada.
Todos esses fatores citados até agora contribuem par uma
complexidade MUITO maior para que qualquer obra de infraestrutura seja
realizada e qualquer serviço urbano básico seja mantido. Isso significa custos
mais elevados para construir habitações ou saneamento, por exemplo. O
provimento de serviços como transporte, coleta de lixo e outros também se torna
muito mais elevado do que em uma região plana com estrutura viária adequada.
Porque a Rocinha?
Comparando da Rocinha com demais favelas da Cidade é difícil
defender que ela seja um dos lugares mais miseráveis da nossa cidade. Apesar de
ser a favela mais emblemática há outros exemplos em que temos mais miséria, em
que o tráfico é mais dominante (e violento) e onde investimentos públicos
poderiam ter maior efeito. Mais que isso, outras favelas apresentam a
oportunidade de uma verdadeira reestruturação (como se busca na Villa 31, na
Argentina) por terem ao seu lado o espaço físico para a construção de novas
vias e moradias de forma planejada e organizada. Exemplos: Ao lado da favela do
jacarezinho há uma unidade abandonada da GE com área de +- 50% da favela. A
favela da Maré poderia ser reestruturada no próprio local onde está que é plano
e pode ter uma estrutura viária implantada. E comunidades na Zona Oeste são
menos densas e em locais mais planos, permitindo melhor planejamento e menores
custos.
Então porque a Rocinha? Pela sua estima. Pelo que
representa. A Rocinha é emblemática, e ao que parece nosso novo governador
adora pompa e festa. Sem dúvida alguma 1 bilhão gasto na Rocinha irá atrair
muito mais mídia gerar muito mais capas de jornal do que acabar com a favela
Parque Arará ou mesmo a favela do Jacarezinho. E há alguma dúvida que o
Governador, que mandou fabricar uma faixa de governador que nunca existiu para
a sua posse, tem um altíssimo interesse por aparecer na capa do jornal? A eficiência do gasto público é relegado a
uma posição secundária.
Investir tamanha quantidade de dinheiro em um projeto de
urbanização da Rocinha nada mais é que seguir a longa marcha de investimentos
sem retorno sustentável a qual estamos acostumados há décadas. As experiências
Cariocas para melhorar as condições de habitação da faixa mais pobre da
população são na sua maior parte catastróficas. Exemplos não faltam. Conjuntos
habitacionais como Cidade de Deus e Parque das Missões mostram o erro duplo de
construir conjuntos longe (à época) da origem das favelas removidas e de
abandonar completamente à própria sorte aquela população após a remoção.
Resultado, viraram novas favelas e o dinheiro gasto foi para o ralo.
Investimentos para tentar “urbanizar” as próprias favelas temos um monte.
Complexo do Alemão, Dona Marta, Pavão Pavãozinho. Aqui também há de se
perguntar se esses bilhões de reais investidos trouxeram ganhos sustentáveis?
Dinheiro que igualmente foi para o ralo. Há ainda os vários exemplos de
Conjuntos Habitacionais de baixíssima qualidade e tamanho, além daqueles que
subsidiados pelo dinheiro público acabam sendo tomados pela Milícia. Novamente,
dinheiro pelo ralo. Todos esses exemplos mostram que a questão habitacional é
complexa e vai muito além de construir apartamentos ou passar um cano de água
em uma viela. É preciso um modelo que considere essas complexidades.
Um novo modelo é necessário
Buscar inspiração em projetos internacionais não tem nada de
errado. Vale a pena ir e aprender. Porém, mais importante que estudar as
soluções aplicadas em realidades distintas da nossa é estudar a nossa própria
realidade. O Rio de Janeiro tem algumas décadas e centenas de exemplos de
investimentos públicos em urbanização e moradias populares. A maioria
malsucedida. Estudar e entender o porquê os bilhões de reais que gastamos não
trazem retorno positivo sustentável para a nossa sociedade é vital para que
novas montanhas de dinheiro não acabem indo pelo mesmo caminho. Do que se vê
até agora o Comunidade Cidade não é nada mais que uma reedição do que já
fizemos e nunca deu certo, apenas mudando a cor da capa e o nome do governador.
Um novo modelo de habitação popular tem que ser pensado em
termos de serviços, qualidade e sustentabilidade de longo prazo. Não adianta
construir uma ou duas centenas de unidades habitacionais no meio de uma
mega-favela como a Rocinha e esperar que haja uma mudança substancial na
realidade da favela. Não adianta fazer um puxadinho viário no meio da Rocinha e
esperar que haja uma mudança substancial na realidade da favela. Não adianta
dar um tapa na infraestrutura de saneamento e esperar que haja uma mudança
substancial na realidade da favela. E mesmo que se faça uma centena de unidades
habitacionais, um puxadinho viário e um tapa na infraestrutura de uma favela do
tamanho da Rocinha é fantasioso esperar que haja uma mudança substancial na
realidade daquela comunidade.
Isso quer dizer que a Rocinha não precise de investimentos
ou não tenha reais demandas da população que devam ser de preocupação do poder
público? Claro que não. Porém, a questão é aplicar de maneira mais eficiente e
com melhores resultados centenas de milhões de reais. À luz das experiências do
passado vemos que o tipo de investimento que se pretende repetir mais uma vez
na Rocinha apenas trouxe melhoras pontuais e de curto prazo, que em muitas
vezes se perdeu em um continuado processo de expansão as favelas que receberam
tais investimentos.
Investimentos em conjuntos habitacionais fora das favelas,
ou que efetivamente “removam” a favela sem que necessariamente haja uma remoção
geográfica das pessoas que ali moram (construção e habitações adjacentes aos
locais atuais, como na Villa 31) são necessários para atrair as pessoas para fora
das favelas da cidade. Antes de fazer investimentos na Rocinha é necessário que
não haja mais uma expansão da mesma. Pelo contrário, é necessário reverter o
fluxo de décadas de expansão as comunidades cariocas. E o caminho para tal não
pode ser simplesmente através de remoções forçadas. Mas tão pouco será através
de investimentos em melhorias pontuais dentro destas mesmas favelas.
É necessário que haja um choque de ofertas de moradias de
qualidade a um preço acessível fora das favelas. É necessário que haja novos
modelos de habitação para população e baixa renda. Esse choque de oferta não
irá ocorrer replicando experiências fracassadas e fazendo investimentos que
custam muito e entregam pouco. Um projeto de habitação popular precisa
considerar as necessidades do público a ser atendido. Precisa considerar a
infraestrutura necessária para que a qualidade dessas habitações se mantenha ao
longo do tempo. Que os serviços públicos à essas populações sejam providos com
qualidade e de forma sustentada, incluindo saneamento, segurança, assistência
social, educação e até mesmo educação financeira e jurídica uma vez que estamos
falando de pessoas que em grande parte pela primeira vez na vida estão diante
da oportunidade de construir um patrimônio.
O Comunidade Cidade na Rocinha, por tudo que vi até esse momento não tem nada de novo e não tem nada que o difere do passado de projetos fracassados que engoliram bilhões de reais sem mudar substancialmente nada. Muda-se a cara e a assinatura do Governador, de resto se replica essencialmente os erros do passado.