2016-10-24

MEDALHAR O EVERESTE



Leonard Cohen conta que, numa das vezes que se encontrou com Bob Dylan, este confidenciou que um famoso "songwriter" lhe terá dito “Bob, tu és o número um, mas o número dois sou eu”. Cohen sorriu e Dylan continuou: “Na minha opinião, Leonard, tu és o número um. Eu sou o número zero”. O que, segundo a interpretação de Cohen, significaria que Dylan – ainda que manifestando grande admiração pela obra dele – se considerava fora desse tipo de competições e para além de qualquer escala de avaliação. Isto é, a questão desde há uma semana intensamente debatida deveria, afinal, ser outra: ganhar o Nobel seria coisa que Bob Dylan merecia que lhe fizessem? O prémio não é flor que se cheire e uma rápida vista de olhos à lista de vencedores, desde 1901, basta para nos darmos conta da generosa lista de inexistências literárias que foi acolhendo, em contraponto com a outra, não menor, de excluídos infinitamente mais importantes.



Na verdade, a história da relação de Dylan com os prémios que lhe foram sendo atribuídos não é exactamente pacífica. Entre ausências, discursos de aceitação monossilábicos e comparências inteiramente silenciosas, deve recordar-se, em 1963, a cerimónia de recepção do Tom Paine Award entregue pelo Emergency Civil Liberties Committee, sobre a qual diria: “Do estrado, olhei para baixo e assustei-me. Todos tinham estado envolvidos com a esquerda, nos anos 30, e, agora, apoiavam a luta pelos direitos cívicos. Mas também usavam jóias e casacos de peles e era como se me dessem aquele prémio por um sentimento de culpa. Levantei-me para sair. Foram atrás de mim e agarraram-me. Disseram-me que tinha de o aceitar”. Ou a outra, na Universidade de Princeton, em 1970, quando lhe foi conferido um Doutoramento Honoris Causa em Música, que recorda na magnífica peça literária que é Chronicles: Volume One (2004): “Apanhado noutra armadilha. Estava a perder toda a credibilidade”. Bob Dylan seria, então, apenas Bob Dylan se, desta vez – ainda que juntando-se à pouco recomendável companhia de Jean-Paul Sartre –, recusasse o Nobel e viesse a público contradizer todos aqueles que defendem a correcção dos motivos para o ter ganhado (até ao momento em que este texto é escrito, não fez qualquer declaração sobre o asunto).



Porém, numa das poucas ocasiões em que se pronunciou aberta e longamente – a entrega do galardão MusiCares Person Of The Year pela National Academy of Recording Arts & Sciences, em Fevereiro de 2015 – fez questão de identificar os ombros sobre que se ergueu: “Vejo as minhas canções como ‘mystery plays' do género daquelas a que Shakespeare assistiu quando jovem; suponho que a origem do que faço poderá recuar até aí. Estavam nas margens e nas margens continuam, após uma caminhada por terrenos escarpados. (...) Aprendi a escrever escutando ‘folk songs’, tocando-as e cruzando-me com quem as cantava quando ninguém ainda o fazia. Durante três ou quatro anos, não fiz outra coisa. Cantava-as por todo o lado em clubes, bares, cafés, festivais, dormia com elas. Foram elas que me revelaram o código para tudo o que era justo”. Algo a que, nas Chronicles já havia acrescentado a veneração por Woody Guthrie, Rimbaud, os blues, Eliot, os clássicos do American Songbook (Berlin, Gershwin, Porter), os beats, o rock’n’roll, a Bíblia, e uma interminável lista de autores, de Tácito a Dante, Milton, Gogol, Dickens, Shelley, Poe, Tolstoi ou Leopardi. Tudo destinado a alimentar aquilo a que, um dia, chamaria “that wild mercury sound”.

Naturalmente, letras de canções (sem deixarem de ser matéria literária) são letras de canções e poesia é poesia. Mas, no caso de Dylan (como acontece também, de formas diversas, com Cohen, Brel, Buarque, Caetano) essa distinção começou a deixar de fazer sentido, pelo menos desde 1965, quando escreveu e gravou "Like A Rolling Stone". Num dos textos que acompanham a recente compilação The Cutting Edge, explica-se que foi por essa altura que Dylan abandonou a ideia de publicar um livro de poesia que começara a escrever no início dos anos 60 ao aperceber-se que uma canção poderia conter tantas ideias como um romance ou um poema. Na mesma época, numa entrevista com a realizadora e argumentista Nora Ephron (então jornalista do “New York Post”), esta perguntou-lhe se os textos dele sobreviveriam no papel, sem música. A resposta foi “Claro que sim. Mas eu não os leio. Prefiro cantá-los”. “Muito mais importantes do que entertenimento ligeiro”, as canções eram, para Dylan, “uma república diferente, uma república libertada” e, enquanto, ingenuamente, o mundo continuava a classificá-las como rock (ou folk rock) o que os ouvidos iam escutando eram, sim, os sucessivos capítulos da mítica “Great American Novel”.

Porque a escrita de Dylan – por muito que resista sem perdas à redução à página escrita – nasceu inexoravelmente enlaçada com a música e a articulação e respiração da voz (e, muito em particular, daquela voz), é nessa exacta medida que deverá ser apreciada: enquanto "storytelling" torrencial, ruído eléctrico, dilúvios de imagens e metáforas testando os limites da linguagem, trazendo à superfície a dimensão propriamente sonora e musical do texto poético e recuperando uma antiquíssima relação entre ambos. Ou, então, como escreveu na “New Yorker” Philip Gourevitch (com mais graça do o havia feito a porta-voz do comité Nobel), “terá sido um enorme erro supor que os textos do influente 'singer-songwriter' e executante de lira cego, Homero, eram literatura”. E, mesmo que a distinção entre “alta” e “baixa” cultura já tenha apresentado sinais vitais em melhor estado, vale a pena referir que, até hoje, caução académica não lhe escasseou: entre inúmeros estudos e ensaios, The Oxford Book of American Poetry (2006), The Cambridge Companion to Bob Dylan (2009), The Norton Introduction to Literature (2005) ou The Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics (2012) incluiram e abordaram a sua obra.

Francamente mais esclarededores serão, enfim, detalhes como o que Alex B. Long, professor de Direito na Universidade do Tennessee, em The Freewheelin’ Judiciary: A Bob Dylan Anthology (2012), revela: desde há muito, Bob Dylan é o autor mais citado em pareceres jurídicos nos EUA. Acrescentem-se a isso os 100 episódios do programa de rádio, Theme Time Radio Hour que, entre 2006 e 2009, Dylan manteve na XM Satellite Radio (mais de 10 000 gravações e 140 000 ficheiros digitais organizados tematicamente num compreensivo panorama da história, literatura e música da América) ou aquela eloquente sequência de No Direction Home (2005), de Scorsese, na qual, Dylan, de modo exuberantemente livre, a partir dos anúncios de serviços da montra de uma "pet shop", improvisa (e dança sobre) uma colagem delirante de palavras e frases que vai disparando num desalinhado puzzle de surrealismo "live" em andamento acelerado. Bruce Springsteen não poderia ter sido mais certeiro quando, em Born To Run – a recém-publicada autobiografia – escreveu: “Dylan é o pai do meu país. Highway 61 Revisited e Bringing It All Back Home foram não apenas grandes discos mas também a primeira vez que me recordo ter sido colocado perante uma visão autêntica do lugar onde vivia. O véu de illusão e engano tinha sido rasgado, as trevas e a luz estavam ali. Com a bota esmagou os bons modos ridículos e a rotina diária que ocultava a corrupção e a decadência. O mundo que ele descrevia estava bem à vista na minha pequena cidade e alastrava à televisão que emitia para as nossas casas isoladas, mas passava sem comentários e era tolerado em silêncio”. Mas, uma vez mais, terá cabido a Leonard Cohen o julgamento definitivo: “Atribuir o Nobel a Bob Dylan é como medalhar o Evereste por ser a montanha mais alta”.

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