2014-12-02

ANTES DE ABRIL: O INVENTÁRIO



Com a pontualidade de um relógio suíço, todos os anos, entre o 25 de Abril e o 1º de Maio, somos obrigados a fazer a revisão da matéria que vai (pelo menos) dos últimos estertores do Estado Novo ao parto de risco da recém-democracia. Não se tratando do antropologicamente céptico relógio de cuco de Orson Welles em O Terceiro Homem, televisões, rádios e jornais contam-nos a história da heróica cavalgada antifascista e, na banda sonora, pelo meio de “Grândolas” e Zip Zips, acreditamos ficar a conhecer tudo sobre o que foi a música mais ou menos politicamente empenhada desses tempos. Mas já ouviram falar de António Pedro Braga, companheiro de Fausto e intérprete de Pete Seeger e da poesia de Reinaldo Ferreira? De Daniel, discípulo de Dylan, Phil Ochs e Joan Baez com um fetiche por Marc Bolan? Da irmã Maria do Céu, freira do Sagrado Coração de Maria e alegada Nico portuguesa, elemento, aliás, de um ignoto destacamento de várias outras canoras esposas do Altíssimo? Não é provável. Mas foi, justamente, para ocupar esse lugar vago no conhecimento da história da música popular portuguesa que João Carlos Callixto publicou Canta, Amigo, Canta – Nova Canção Portuguesa (1960-1974), inventário quase exaustivo da música em transformação desse período.

Qual foi o ponto de partida para a concepção deste livro?

Essencialmente, parte de uma grande paixão pela música portuguesa em geral e, particularmente, pela deste período: a canção de protesto, os cantautores, alguns grupos folk e a nova canção ligeira a partir de finais dos anos 60, com a geração que vinha dos grupos de rock, como o Fernando Tordo, o Paulo de Carvalho ou o Carlos Mendes. Uma geração que, de certo modo, lançou as pedras para o que viria a seguir ao 25 de Abril. Como referência, houve dois autores, para mim, essenciais: o Mário Correia, com Música Popular Portuguesa – Um Ponto de Partida e o José Viale Moutinho, com A Memória do Canto Livre Em Portugal. São referidos no livro 330 discos a que tive acesso em feiras, através de coleccionadores, revistas, lojas de segunda mão, Internet... Como, infelizmente, ainda não há um arquivo de som em Portugal, é impossível fazer-se como na Biblioteca Nacional, para consultar a obra de um conjunto de autores ou de um movimento. A grande maioria do acervo comercial está conservada no arquivo da RDP.



A pesquisa e a recolha de material foram orientadas ou, à medida que ia avançando, ia tropeçando em pistas novas e inesperadas?

Foi um trabalho cruzado. Posso dizer que o ponto de partida foram os dois autores que citei. Desde finais dos anos 90, comecei a construir uma base de dados para conseguir ter alguma ideia do que saiu e em que data. Depois, o facto de ter colaborado com a professora Salwa Castelo Branco na Enciclopédia da Música em Portugal, em 2002/2003, permitiu-me reunir muitos elementos sobre a música editada dos anos 50 para a frente. Consultei publicações como “O Mundo da Canção”, a “Flama”, até a “Plateia” que, apesar de ser mais comercial, continha muita informação que deveria ser encarada com um olhar crítico. Tentámos conferir ao máximo as fontes, falar com os músicos e editores embora, muitas vezes, eles também não tivessem a noção exacta dos anos em que tinham saído os discos. A datação foi, por isso, um trabalho difícil.

Porque circunscreveu o trabalho a este período de 15 anos?

1960 foi o ano de lançamento do primeiro vinil do José Afonso, o EP A Balada do Outono (deixei de fora dois discos de 78 rotações anteriores) que é um disco que, de certo modo, procura já transformar a canção de Coimbra a partir de dentro e também um primeiro passo para a renovação da canção portuguesa. O final em 74 decorre, obviamente, do 25 de Abril. Tinha de o fechar de alguma maneira; mesmo assim, o livro ficou com 240 páginas, com 103 cantores e grupos e 330 discos. Depois porque, eventualmente, gostaria de fazer uma continuação deste livro que fosse desde 74 até... ainda não me decidi... talvez até à entrada de Portugal na CEE ou até à queda do Muro de Berlim... porque há alguns nomes que aqui figuram que prosseguiram carreiras até aos dias de hoje, como o Sérgio Godinho, o Fausto ou o José Mário Branco.



Há um fenómeno peculiar em que nunca tinha antes reparado: as freiras cantoras...

É engraçado porque já o Mário Correia as incluía. A irmã Maria Humberta cantava “O Menino do Bairro da Lata”... na sequência da abertura do concílio Vaticano II, houve elementos ligados à igreja que também intervieram através da canção. Uma outra freira, a irmã Maria do Céu, gravou um primeiro disco só acompanhada à guitarra. Em 65/66, foi fazer uma licenciatura a Paris e gravou um segundo disco com gente do rock e o José Cid a produzir. Há tempos, estava a ouvir uma das faixas desse disco e um amigo meu dizia-me que lhe parecia a Nico produzida pelo John Cale, uma espécie de Marble Index português em miniatura.

Há uma presença considerável de nomes que, mesmo a maioria das pessoas que se interessam pela música portuguesa, deverão desconhecer em absoluto...

Muitos deles também só ao ouvir o disco ou ao ler o artigo é que os descobri. Há personagens curiosas como o Carlos Bastos que gravou o "Hey Jude", dos Beatles, com o António Chaínho a tocar guitarra portuguesa.

Durante a organização do livro, houve alguma surpresa especialmente forte, do género “mas de onde é que isto saiu que eu nunca tinha ouvido”?

Antes de responder directamente a isso, há uma surpresa que é a pessoa e a obra do Luís Cília. Claro que já o conhecia mas não tinha a noção exacta da incrível quantidade de discos que gravou, tanto antes como depois de 74. É inexplicável o desconhecimento da obra dele, hoje em dia. Como é possível que alguém que gravou tanto e que, musicalmente, evoluiu como ele evoluiu, actualmente, apenas tenha no mercado uma colectânea que saiu em França que junta os três discos da Poesia Portuguesa de Hoje e de Sempre? O Deniz Cintra foi uma surpresa. São apenas três discos mas é curioso como alguém ligado ao meio académico, como vários outros nomes, grava, tão novo ainda com nomes do rock como o Filipe Mendes, dos Chinchilas. Outro foi o Daniel, um tipo que gravou cinco discos e, tendo participado num Festival da Canção, dizia que queria usar uma capa como o Marc Bolan, dos Tyrannosaurus Rex, ainda não T. Rex.

Concluído o livro, ficou com a ideia de ter conseguido reunir todo o material desta época ou tem a sensação de ainda lhe terem escapado alguns discos e autores?

Tive a intenção de ser o mais inclusivo possível. Suponho que inventariei mais de 95% do que existiu neste âmbito. Mas isto é sempre um trabalho em construção. Não incluí, por exemplo, a actriz Elisa Lisboa que era quem tinha sido originalmente escolhida para cantar a ‘Desfolhada’ no Festival da Canção de 1969 mas que, devido a ter uma estreia de uma peça, teve de desistir duas semanas antes. Ela gravou um EP com uma música, ‘Mulher Mágoa’ que, depois, a Mísia gravaria também e mais duas canções em francês. Só gravaria mais um single, em 1975, com o Quarteto 1111, com um poema do José Régio. Deveria tê-la incluído? Não sei. Mas não me parece que tenha ficado muita coisa importante de fora. 

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