2017-03-08





A priori, é importante dizer que esta história só fará maior sentido para quem conhece um pouco das memórias do pequeno município de Jussiape, incrustrado no extremo sul da Chapada Diamantina, região que permeia o interior da Bahia. Pois bem, sabe aquele velho ditado "as herdeiras de Mira Bêra", que algumas das pessoas mais velhas ainda vivas da antiga capital do gado sempre reverberam ao se referir às mulheres que ousaram a ser que são? O motivo de pouco se saber [e ouvir] sobre esta figura feminina que se tornou tabu ao desafiar Deus e o Diabo, no reino da Cana-de-açúcar, é o preço do esquecimento pago pelo espírito de um vulto carmim.

Escrever sobre a lendária rameira que não temia nem mesmo certo coronel de Jussiape é tarefa árdua, coisa para cabra macho. O pouco que se sabe é que a mulher-dama passou anos desafiando Deus, o Diabo, a polícia, coronéis e autoridades de prestígio em Jussiape e região, no início do século vinte. Sem pretensão, fundou um exíguo império de putas e gozou de pequenos privilégios nos últimos dias de sua vida, até ser expulsa da povoação pelos sortilégios de ser uma mulher dona do próprio nariz.

Imagino que ser puta no começo do século passado não tenha sido coisa fácil, ainda mais na imensidão destas terras, onde o sol queima mais para uns do que para outros. Na verdade, ser puta não é lá muito fácil em qualquer canto deste mundaréu de meu Deus, assim penso, em qualquer era deste chão. Para Mira Bêra, ser puta, era mais do que uma simples vocação, ou talento, mas a única oportunidade que lhe foi arranjada em vida pelo destino. Para ela, depois de muitas idas e vindas pelas vielas do tempo, ser puta se tornou um dom. Ao lidar com maestria na profissão não reconhecida, Mira Bêra tivera certeza que havia nascido para ser puta. Em sua mente pairava a certeza de carma, era para ela uma espécie de castigo vindo de outras vidas; era um fardo tão pesado, como o de uma coroa de diamantes na cabeça de uma jovem rainha, que a fazia perceber, então, que crescera puta e se tornara uma gran-puta desde muito cedo.

Maria de Mira Bêra, nome de batismo que a própria sina lhe encarregara em dar-lhe de presente nos preâmbulos da vida, então com 39 anos, recém-chegada a Jussiape, ganhou os olhares de quem cobiçava seu corpo, admirava secretamente sua vitalidade no torso, o derrière de suas pernas, e se surpreendia com uma força descomunal para uma simples mulher de estrada. Intimamente, muitos ficavam mexidos, excitados, apenas com a hipótese de tê-la nua em seus lençóis. Sua pele encardida, herança de pais mestiços, como julgavam outras mulheres, também castigada pelo sol, não a deixava menos atraente. Pelo contrário, seus cabelos volumosos e encaracolados, presos em uma fita de seda vermelha, era uma porção extra de um charme que qualquer meretriz a sua altura invejava ter. O vermelho-sangue era uma tonalidade presente nos seus vestidos de renda decotados, ousados demais para uma marafona desfilar em plena Jussiape do início do século vinte.

No princípio, não havia ninguém a seu serviço, era apenas ela e a sua coragem de manter sua honra de puta no Fuça- um emaranhado de casas de prostituição em uma rua sem reputação de Jussiape, onde mulheres de bem eram proibidas de transitar. Com certa recorrência, sonhava em ser rainha da rua do Chamego, mas era um tanto tardio, já que dera espaço para outros sonhos se apossarem de suas ambições. Um ano antes, Mira Bêra havia sofrido muito com a injusta separação imposta pelo seu antigo sócio que também exercia vagamente o papel de marido. Ela havia sido extorquida, e tudo que um dia havia possuído em vida, perdera. Inclusive, a própria honra. Pouco antes de um ano, ela decidiu rumar por outros caminhos do sertão e se aventurar a procura de uma nova história. Em suas andanças pelo Circuito do Ouro, havia encontrado um atalho que dava passagem a Jussiape, cravejada nas Lavras Diamantinas.

Uma das convicções fabricadas pela sociedade da época é a de que, além de usurpadora, já que deitava com homens casados, ela era uma destruidora dos bons costumes, protagonista do erotismo, a dona da plateia, o que contribuiu para fazer de Mira Bêra uma personagem criada aos olhos e imaginação das damas da sociedade jussiapense. Para a maioria das carolas, baratinhas de igreja, que serpenteavam os ladrilhos da Matriz, ela deveria ser entregue há tempos, assim como todo o seu corpo pecaminoso, ao julgo popular, para evitar mais conquistas da cúmplice do Diabo.

Numa época em que as pessoas produziam um comportamento fortemente moldado a uma mentalidade religiosa, um quadro ostentava uma das paredes encardidas do seu quarto. Nele, um corpo nu, ilustrado a óleo, trazia técnica de extraordinária versatilidade oferecida ao artista, conferindo resultados magníficos. A ilustração de Mira Bêra ganhava status de sagrado, como um totem de deuses nativos, perdidos aos olhos da civilização, no quartel general das quengas de Jussiape, e impedia qualquer cidadão de subestimar a força que ela possuía como mulher. A arte, que ganhou fama de blasfêmia, era envolta de mistérios, o que lhe conferia um poder ainda maior. Ora, tinha-se a impressão de que quando aria de Mira Bêra fora retratada, acabara de sair da infância e desfrutava dos primeiros anos da juventude, como uma flor que há pouco desabrochou; ora, era como se o quadro tivesse sido pintado ontem.

Dizer que Mira Bêra ganhava a vida fácil não é lá muito justo, afinal sua vida poderia ter colecionado todos os adjetivos, menos o de fácil. Andar na rua exposta aos olhares de todos que a subjugavam, sem nenhuma piedade e compaixão, correndo o risco de levar uma sova de alguma senhora bem casada e de prestigiado nome, muito comum a prostitutas naquela época; ser presa sob quaisquer acusações; correr o risco de ter que defender as suas herdeiras de algum cliente repugnante, ou de qualquer sacripanta que por ventura atravessasse o seu caminho; ser, incontáveis vezes, tratada como um lixo qualquer, escória, além de ter que ser obrigada a satisfazer os desejos sexuais de naturezas inconfessáveis, de grandes figuras da sociedade, não poderia, em nenhuma instância, ser descrito como leviano ou à toa.

Com a sorte de uma andarilha notívaga, Mira Bêra, teria todas as chances de ter em seu corpo doenças sexualmente transmissíveis. Nunca teve o infortúnio de engravidar e ter que criar uma criança para dramatizar ainda mais a sua vida. Nunca desejou transmitir o legado de sua miséria. Embora, o que mais provocava incômodo numa sociedade de base conservadora, com pilares machistas, era o medo de perder, ainda que por algumas noites, seus maridos para as putas, herdeiras de Mira Bêra. Além de elas desfrutarem da liberdade sexual que só as putas detinham.

Para uma mulher que fez do próprio corpo mercadoria desejada por todos os homens daquela região e se arriscava a colocar em perigo as posições sociais das senhoras casadas e de diversas moças prestes a se casarem, Mira Bêra mostrou, afinal, que aquela forma de vida alternativa era possível às mulheres mundanas. Ter consciência disso deixava muitas esposas possessas que, por pudor, ou, hipocrisia, não exerciam a plena realização de ser mulher.

Em um daqueles anos incertos da década de 1930, surgiam em Jussiape diversas mulheres a procura de Mira Bêra. Todas elas, as que chegaram, buscavam fazer parte de seu império, impulsionadas pela avidez de servir a Casa das putas. Ao concorrer a uma vaga em uma famosa casa de putas, trazia sempre a consciência da sentença de ser condenadas à marginalidade, como todas as putas daquela época eram, além de excomungadas da sociedade, esquecidas na vala da vida, no silêncio do esquecimento.

Pouco se sabe sobre o destino de Mira Bêra, assim como o de todas as outras mulheres, do metiê das putas. Nunca mais houve alguém que tivesse coragem em proferir algo sobre o paradeiro, ou mesmo sugerir onde ela teria encontrado o fim de sua vida. Não depois de ter gritado aos quatro cantos daquele lugarejo, com os seus seios à mostra, que alguns homens, a mando de certo coronel, havia lhe dado uma surra em frente à Casa das putas por ela ter encontrado em um jovem cavalheiro, o amor que nunca havia experimentado no peito. Mira Bêra se apaixonara por um jovem que acabara de perder para os anos a mocidade. Era um amor puro e sem a sorte de durar. "Pois bem, sou puta, e gosto do meu ofício, levo comigo a alcunha que me foi dada. Sou puta, pois sou livre para ser quem eu sou e pertencer ao homem que eu quiser, e me entregar na cama que me convir", havia dito Mira Bêra depois de levar uma bordoada braba do coronel, que transformou o Fuça em uma zona de confronto entre putas e militares em plena quarta-feira de cinzas.

Depois daquele dia, Mira Bêra levava consigo o desprestígio de ser quem era. Saiu da cidade, escorraçadas pelos jagunços do homem mais poderoso daquele lugarejo que desejava não vê-la nunca mais em sua vida. Não depois de tê-lo trocado por um meninote belo e atraente, objeto de desejo entre as melindrosas prostitutas da cidade. Uma escolha traiçoeira conferida à má sorte da criadora da mais famosa e esquecida casa de prostituição de Jussiape.

Para Mira Bêra, o direito de ser puta era dela por excelência, e isso ninguém conseguiu tirar dela. Ser puta para aquela mulher marchante sempre foi lutar contra a violência física, verbal e icônica sofrida pelas mulheres daquela época que se destinavam à liberdade de escolher o próprio destino. Defensora do aborto, pândega, galhofeira, baderneira de primeira qualidade. O seu ditado, cá, permaneceu: "Quá!, minha fia, princesa de bordel é puta!".

_tudo nesta publicação é fictício, exceto o que não é!

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