2015-07-08



Em julho de 2014, o Flamengo contratou - sem divulgação oficial - Fernando Gonçalves, ex-diretor executivo da Traffic, para o departamento de futebol. O cargo foi definido como “coaching”, cujas missões seriam ligadas exclusivamente à área de psicologia do esporte. Um ano depois, porém, a presença do profissional causa questionamentos, polêmica e ruído na Gávea.

No futebol profissional, o funcionário é visto como protegido e conselheiro do diretor-geral do clube, Fred Luz. Corresponsável por decisões importantes, como a contratação e venda de jogadores, o ex-empresário gera desconforto pela voz ativa no departamento de futebol e convive acusações veladas de conflito de interesses. Situação acentuada após a participação da Traffic no agenciamento de atletas – a empresa recentemente passou a gerir as carreiras de Samir e de Vinícius, joia da equipe sub-15, por exemplo.

- Sinceramente, zero de embaraço. Eu tive absolutamente zero de participação nisso, a Traffic é uma empresa constituída, que está viva e opera - disse Fernando, por telefone.

Formado em psicologia, Fernando é figura quase despercebida pelo elenco nas visitas ao Ninho do Urubu. Mesmo em viagens para jogos, cada vez mais raras, ele é visto mais na companhia de membros do alto escalação da diretoria do que de atletas ou comissão técnica. Questionado pelo GloboEsporte.com, um jogador sequer soube emitir opinião sobre o dirigente: "Quem? Não sei quem é!".

Fernando Gonçalves rebate e explica o seu trabalho. Explica que é o responsável pelo Centro de Excelência em Performance, vinculado basicamente às divisões de base, e engrenagem de um processo a médio e longo prazo e descarta interesse em transferências (confira a entrevista com o profissional no fim da matéria).

- Questão de negociações, sinceramente, hoje não me dá apetite intelectual. Já deu para mim – garantiu.

O discurso, no entanto, vai de encontro às sugestões em investidas rubro-negras no mercado. Fernando foi um dos principais entusiastas na tentativa de contratar Alexandre Pato no final de março - a postura irredutível do atacante, que recusou-se a diminuir o salário que recebe no São Paulo, brecou as conversas - e levantou ainda a possibilidade do Flamengo "adotar" Douglas Coutinho, promessa do Atlético-PR, que pertence ao mesmo fundo de investimentos que comprou Marcelo Cirino.

A comissão técnica rechaçou de imediato a possibilidade, alegando já ter muitas peças com as mesmas características no elenco, e não escondeu o descontentamento com a situação. Nos bastidores, Vanderlei Luxemburgo se mostrava incomodado com os palpites frequentes do "coaching".

Responsável direto pela chegada de Fernando Gonçalves e figura mais próxima na diretoria, Fred Luz define a função como um “consultor do futebol”.

- O Fernando foi contratado lá atrás para o departamento de futebol para fazer um trabalho de consultoria, aproveitando a experiência dele para apoiar o nosso departamento de futebol, na época tocado pelo Ximenes. Quando o Rodrigo Caetano entrou, o Fernando continuou fazendo o trabalho de consultor do futebol, porque o Rodrigo Caetano assim entende que é um trabalho útil. Apoia o trabalho do Rodrigo, ele não tem função executiva no Flamengo. Tem simplesmente um trabalho de consultoria, que está focado em algumas ações que nós estamos querendo desenvolver no departamento do Flamengo de estruturação.

O diretor executivo de futebol do Flamengo, Rodrigo Caetano, usa o termo "facilitador" para definir a atuação de Fernando dentro do departamento, principalmente no tocante ao Centro de Excelência em Performance e ao Centro de Inteligência de Mercado, projetos citados por Fred Luz como prioridades de momento do clube.

- Ele é um facilitador desses projetos que o Fred citou. (Qual a pauta de Fernando?) É muito mais relacionada à questão estruturante. O que é estruturante? São projetos que são tocados em paralelo à minha função de executivo. Mas são subordinadas ao meu cargo. Então nada é realizado sem a nossa aprovação.  Além da experiência (de Fernando), do conhecimento e da formação, ele participa disso tudo. Mas não é especificamente uma consultoria quando nós solicitamos. Muito pelo contrário. Ele participa dos projetos, por conta das inúmeras atribuições que tenho. Não tenho condições de tocar tudo nos detalhes. Ele auxilia muito. Para falar de dois projetos, nós temos o Centro de Inteligência de Mercado, onde há um gerente, que é o Marcos Biasotto. O Fernando ajuda e participa junto também do centro, que faz o levantamento de todo o banco de dados de jogadores internos e o que a gente busca no mercado. Há também a participação dos nossos analistas de desempenho. É um departamento que no nosso organograma, obviamente está abaixo do departamento de futebol, está debaixo do meu guarda-chuva, e o Fernando participa também. Do desenvolvimento nosso hoje do Centro de Excelência em Performance ele também participa, como um dos líderes. Então estou citando dois casos dos quais ele participa.

Mas há contradições nos discursos. Fred nega, por exemplo, qualquer participação de Fernando Gonçalves na saída do atacante Hernane para o Al Nassr, da Arábia Saudita – o Flamengo levou um calote de R$ 7 milhões e briga para receber o dinheiro na Fifa.

- No Hernane, ele não participou. Não participou – insistiu.

A resposta de Fernando à mesma pergunta é um pouco diferente:

-  No caso do Hernane, a gente apresentou o rapaz da Traffic que tinha contato com o clube (Al Nassr) ao Paulo Pitombeira (empresário do atacante). Ponto.

Os dois concordam quando o assunto é a intermediação na negociação entre Flamengo e o fundo de investimentos Doyen na contratação de Marcelo Cirino. Mas novamente esbarram nas versões. Fred diz que o Flamengo tinha dificuldade na relação com fundos de investimentos e pediu ajuda ao consultor.

- Na questão do Cirino, uma das missões originais que o Fernando teve antes de o Rodrigo chegar aqui era uma carência do Flamengo. Muitos clubes têm em seus elencos atletas oriundos de parcerias com investidores pesados, tipo Grupo Sonda, Fernando Garcia, o próprio BMG e o Doyen. E o Flamengo, até por uma questão de passado e de credibilidade, não tinha a condição de porto seguro para que esses investidores colocassem jogadores de qualidade aqui. Quem nos colocou em contato com a Doyen foi o Fernando. O Fernando que abriu as conversas, mas também como um trabalho de consultoria.

Fernando Gonçalves, por sua vez, afirma que recorreu à internet para coletar mais informações sobre o Doyen e ligar as pontas do negócio:

- Não conhecia os caras do Doyen, e aí comecei a ver participação dos caras. Pesquisei na internet por minha livre ação, aí queria entender o que os caras estavam fazendo, porque o Fred havia me pedido. Disse: "Quem são esses caras que estão fazendo isso tudo?". Pedi informações ao André Zanotta, na época gerente de futebol dos Santos, por causa do Damião. Ele me explicou, marquei encontro.

Confira abaixo a entrevista completa com Fernando:

Você foi contratado pelo Flamengo para fazer o coaching, trabalhando a questão mental, ou para a consultoria? Atua em negociações? Como funciona o seu papel?

Fernando Gonçalves: Para sintetizar isso, é preciso fazer duas curvas no Flamengo, a de curto prazo e a outra de médio e longo prazo. Eu participo da curva de médio e longo prazo, da pauta estruturante. Tem muita confusão, foi uma questão de comunicação muito mal feita, inclusive por mim, quando eu saí da Traffic. Estou no terceiro ciclo da minha vida. No primeiro, de 16 anos, eu trabalhei no mercado de capitais. Depois fui para um segundo, coincidentemente também de 16 anos, na questão de futebol. Só que nesse meu segundo ciclo eu mudei completamente o meu enfoque e todo o meu interesse passou a ser na linha do comportamento humano. Fui estudar filosofia, psicologia, fiz pós-graduação. Minha saída da Traffic só foi possível porque o Flamengo me apresentou um projeto em que eu podia conciliar esse meu interesse, que era o quê? O estudo do comportamento humano e a pauta da excelência em performance. Nesse contexto que eu vim para o Flamengo, e aí ficou uma coisa muito marcada: "Ah, psicologia". Ah, então tem que falar com o Luiz Antonio?



Na realidade, estamos fazendo um projeto muito ambicioso, de médio a longo prazo, chamado Centro de Excelência em Performance. Onde a questão da psicologia e do coaching é peça-chave. É uma fronteira que eu pessoalmente reputo como a grande a fronteira do futebol, é a questão mental. Estamos fazendo uma ferramenta chamada Maia (Mapa de análise individual de atletas), onde a gente está integrando os saberes que estão lá. A gente está integrando preparação física, fisiologia, nutrição, área de saúde. Estamos em conversas com grandes empresas internacionais para aportar esses conhecimentos dentro desse Flamengo.

Mas e a parte da psicologia?

Nessa questão específica existe já o departamento de psicologia no Flamengo. Eu trouxe o doutor Carlos Eduardo de Brito, um dos maiores psicólogos do Brasil nessa área cognitiva e comportamental. Toda essa abordagem da psicologia e do coaching, estamos fazendo um protótipo no sub-20 em parceria com o Zé Ricardo (treinador) e o Léo Inácio (treinador) para que a gente amadureça o modelo e tente levá-lo para o profissional. Para usar no profissional, depende do treinador que lá está. Muito importante que o treinador esteja alinhado. A minha pauta é com Biasotto, da área de inteligência, com o Rafael Vieira, que o gerente é da área de análise de desempenho. Onde estamos montando essas ferramentas todas. Ouvi muita gente dizendo que psicologia é fraude, um biombo. Trouxemos um dos maiores psicólogos do Brasil, com reconhecimento internacional.

Mas qual é a sua prioridade: consultoria ou o coaching?

Aí tem uma confusão. Eu recebo um dinheiro do Flamengo por mês, presto consultaria. Dentro dessa consultoria, a coisa mais importante da consultoria, que representa 100% da consultoria, é botar de pé o Centro de Excelência em Performance. E um dos pilares do Centro de Excelência em Performance é a psicologia, o treinamento mental e o coaching, que está tendo um protótipo no sub-20. Faz parte do cronograma de execução treinar no sub-20, depois descer para o sub-17. Agora, se o Cristóvão achar que é relevante uma abordagem agora, temos um cara de alto nível, que é o doutor Carlos Eduardo de Brito, para isso. Temos todas as ferramentas para isso, caso o Cristóvão ou o Rodrigo queiram. Até me excluo dessa. Se achar conveniente fazer uma abordagem ao Marcelo Cirino, ao Everton ou quem quer que seja, o Flamengo tem um departamento de psicologia. Não é um fantasma.

Quando foi publicado de que você chegaria para o papel de coaching, imaginava-se que você atuaria junto ao elenco no campo, que atuaria como um psicólogo. A relação com o grupo hoje é mínima, certo?

Hoje é zero. Hoje sou um coordenador da implementação do Centro de Excelência em Performance. Quando se falou nos termos psicologia e coaching, é porque é verdade. Porque eu sou psicólogo e coach. Aliás, sou economista com pós-graduação em finanças e psicólogo com pós-graduação em psicologia positiva. Essa é minha formação. E lá na frente, quando o modelo estiver consagrado, aí a atuação vai ser de psicólogo e coach. Mas isso é lá na frente, quando o modelo estiver consagrado, quando a área de saúde estiver consagrada, quando as caixinhas da preparação física e da fisiologia estiverem alinhadas. Enquanto isso, quem está com a mão na massa é o doutor Carlos Eduardo. Então é óbvio que minha relação é zero. O mais importante até agora foi quando colocamos 15 profissionais dentro de uma sala, coisa inédita até hoje no Flamengo, falando a mesma língua. A gente botou o médico vendo como a psicologia mexe com a nutrição, como a nutrição impacta a saúde. Como a saúde impacta a parte técnica. Na realidade, dentro desse conceito a gente cria um slogan: "Cada atleta federado do Flamengo, seja o Guerrero ou o garotinho do juvenil, é um projeto de performance. Cada profissional do Flamengo tem que estar preocupado em levar o atleta para a performance ótima". Essa é a meta do Centro de Excelência em Performance, que é o alvo da minha consultoria. Nunca vi um projeto com uma cara tão boa, tão bem-estruturado, olhando o atleta de forma multifrontal.

Você participa de negociações?



Na realidade, todo meu acordo com o Flamengo é nessa curva de longo e médio prazo. Botar de pé o Centro de Excelência em Performance, onde psicologia e coaching estão inseridas. Estamos com um protótipo maravilhoso sendo desenvolvido na equipe sub-20. No Brasil, a gente sempre teve arremedos de trabalhos com treinamento mental. A gente não quer fazer arremedo, quer fazer algo muito potente, consistente para esse Flamengo potência do futuro. Essa parte de negociações tem o Conselho Gestor, eu nunca participei de nenhuma reunião dessas do Conselho Gestor. Na realidade, fizemos duas aproximações usando a minha experiência de Traffic, de muito tempo nessa parte de negociações, direitos econômicos e de representação.

Que aproximações?

Eu fiz uma aproximação do Fred (Luz, CEO do Flamengo) e do Rodrigo Caetano com o pessoal do Doyen. Eles que conduziram a negociação, que contrataram valores, salários, a estratégia da negociação, acordos e etc. E no caso do Hernane, a gente apresentou o rapaz da Traffic que tinha contato com o clube (Al Nassr) ao Paulo Pitombeira. Ponto. Não está na minha pauta, não tenho interesse. Minha pauta é a do comportamento. Tenho consultório, uma parceria com o doutor Carlos Eduardo na área corporativo e na área do Wellness, do bem-estar. O Flamengo fez quantas contratações agora? Guerrero, Emerson, Alan Patrick, Ayrton, Pará, Bressan, Almir, Arthur Maia. Nem participei de nenhuma dessas discussões, dessas conversas. Não está na minha pauta participar da reunião do Conselho Gestor.

Explique o caso do Hernane, por favor.

O Paulo Pitombeira tinha a proposta do Al Nassr, via o Rafael Botelho, que estava lá na Traffic. Falaram comigo e, na época, passei para o Ximenes (Felipe, ex-diretor executivo do Flamengo) e o Fred. Pessoal, tem essa situação aqui. Eles avaliaram, chegaram a conclusões. Pede garantia, não pede garantia. Aumenta o preço, não aumenta o preço. Flamengo tem uma área executiva. Então foi exatamente isso. Rafael Botelho é um rapaz que trabalhava na Traffic e tinha contato com o Al Nassr. Ele, um mês antes, havia feito operação do Marquinhos Gabriel, ex-Palmeiras, para lá. Ele ligou para o Paulo Pitombeira, e o Paulo tinha confiança em mim. Ele construiu o modelo de operação, o Paulo está falando isso, o Rafael está falando isso. O Fred levou para discussão interna, agora a parte executiva de valores, prazos e etc. eram com Fred e Ximenes. Eu simplesmente fiz o seguinte: "a bola é de vocês". Foi apenas uma ponte, justamente para mostrar que essa não é minha função. Questão de negociações, sinceramente, hoje não me dá apetite intelectual. Já deu para mim. O Centro de Excelência em Performance é que me brilha os olhos hoje.

E o do Cirino?

Não conhecia os caras do Doyen, e aí comecei a ver participação dos caras. Pesquisei na internet por minha livre ação, aí queria entender o que os caras estavam fazendo, porque o Fred havia me pedido. Disse: "Quem são esses caras que estão fazendo isso tudo?". Pedi informações ao André Zanotta, na época gerente de futebol dos Santos, por causa do Damião. Ele me explicou, marquei encontro, gostaram da conversa e disse ao Fred e a Wrobel: "Tem uns caras que vale a pena conversar". O Fred pilotou e criou vínculo com português que é o dono da Doyen. Sempre construí boas relações. Consegui fazer com que o Petralha, que tinha um problema gigante com o Flamengo, conversasse com o Flamengo. Quebrei o gelo, disse ao Petalha que o Flamengo é diferente, que os caras eram sensacionais. Criei agenda entre Wrobel, Petralha e Fred. Valores, se o jogador é esse ou não, isso está na pauta executiva. Desencadeador poderia ser qualquer outra pessoa, o Marcio Braga, por exemplo. Nesse ano, quantas negociações o Flamengo fez? Conversou com Conca, Cícero, Montillo, Walter. E você me viu fazendo alguma negociação?

Você não atuou na contratação do Cristóvão Borges?

Eu não falava com o Cristóvão há um ano peremptoriamente, veementemente. Fui pego de surpresa com a demissão do Vanderlei após o jogo contra o Avaí.

Você trabalhou por 16 anos na Traffic, e a empresa passou a explorar a carreira do zagueiro Samir e do Vinícius, atacante mais visado da equipe sub-15. Não se trata de uma situação embaraçosa ou constrangedora?

Sinceramente, zero de embaraço. Eu tive absolutamente zero de participação, a Traffic é uma empresa constituída, que está viva e opera. Tenho relação muito boa com o Carlos Leite, que era o antigo empresário do Samir, e até onde estou informado vários agentes passaram em torno do Samir. Na realidade, é uma coisa que não tenho a menor possibilidade de intervir. Uma empresa do tamanho da Traffic que tem o "share" que ela tem, não seria razoável não ter nenhum jogador no Flamengo. É como se o Mailson da Nóbrega tivesse trabalhado no Banco Central e ficasse congelado. Haveria embaraço, sim, se eu trabalhasse nessa área de negociações. Se eu quisesse continuar com negociações, ou teria montado minha própria agência ou me associaria a vários empresários que me procuraram. Não é essa minha pauta hoje. Com o Vinícius, a lógica é a mesma. Inclusive aqui no Flamengo, ao conversar com o Noval (Carlos, diretor executivo da base rubro-negra), dei várias dicas ao Flamengo de como se proteger desse tipo de ataque, seja da Traffic, de empresário a, b ou c. Essa relação com Vinicius, se não me engano, acho que é anterior à minha chegada ao Flamengo. Zero embaraço. Como que a gente vai impedir a Traffic de chegar a qualquer jogador do Flamengo? Que poder tenho para influenciar ou evitar esse tipo de situação? É zero de embaraço pela forma absolutamente transparente com a qual atuamos. O Fred e o Rodrigo sabem de todos os passos que a gente dá.

Fonte: GE

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