2016-10-08

Portugal fez um caminho e está no pelotão da frente, no contexto europeu. Hoje, 53,2% da eletricidade produzida em Portugal já provém de energias renováveis. Falta dar o passo seguinte: eletrificar os transportes e tornar os edifícios mais eficientes

Parece um cenário de filme. São filas e filas de gigantescos painéis solares a perder de vista na paisagem seca do Alentejo. Vamos a meio da tarde, o sol já baixou mo, mas este é um daqueles dias quentes de outono, o calor parece que não abranda. Talvez por isso, as ovelhas que por ali andam – são umas largas centenas – decidiram abrigar–se nas sombras que os painéis projetam no chão.

O contraste entre a imagem futurista da Central Solar Fotovoltaica da Amareleja e o bucolismo do rebanho pachorrento é uma inesperada surpresa, mas esta não é só uma convivência forta e um pouco divertida. O rebanho, que vive 24 horas por dia, todos os dias do ano, no espaço vedado da central, tem por missão eliminar o excesso de vegetação – na verdade, come-a -, impedindo que cresça demasiado e possa tornar-se rastilho para um incêndio.

Além disso, como a “limpeza” que os animais fazem ao mato não é uniforme – resta sempre algum mais rasteiro -, isso gera os nichos perfos para que uma pequena ave, o alcaravão (Burhinus oedicnemus), que em Portugal tem estatuto de “vulnerável”, encontre ali, na vegetação rente ao solo, os abrigos de que precisa para nidificar. “Foi uma das contrapartidas para a instalação da central”, conta Manuel Barbosa, o diretor-geral para Portugal da empresa proprietária da central, a espanhola Acciona Energía.

Esta coaação entre animais e tecnologia tem vantagens mútuas, mas acaba também por simbolizar na perfeição a essência das próprias energias renováveis, alternativas ou limpas, como também são conhecidas.

Ao contrário dos combustíveis fósseis mo poluidores, que eem dióxido de carbono (CO2) para a atmosfera e estão a causar o aquecimento do planeta, estas usam o que a natureza dá para a produção de eletricidade: a energia do sol, do vento (no caso das eólicas), dos rios e da chuva (as hídricas), das marés e das ondas ou do calor do interior da terra, a chamada geotermia – esta já está, aliás, a ser aprovada nos Açores. “Um terço da eletricidade em São Miguel já é assegurado pela geotermia, e agora vai iniciar-se também na Terceira”, lembra Carlos Pimenta, antigo secretário de Estado do Ambiente e um dos mais ativos impulsionadores das renováveis em Portugal, sobretudo como gestor e responsável de parques eólicos.

Recordes e máximos históricos

Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Portugal tem alguns casos pioneiros e ocupa atualmente, no contexto europeu, o pelotão da frente na utilização de energias renováveis para a produção de eletricidade: mais de metade (53,2%) da que é produzida hoje no país já provém de fontes renováveis, com as barragens e as eólicas a garantirem a maior fatia dessa energia limpa, que até tem recordes para mostrar.

Eis um deles: neste ano, entre 7 e 11 de maio, bateu-se um novo valor absoluto, que chegou à imprensa e às televisões estrangeiras: durante 107 horas consecutivas o país consumiu apenas eletricidade produzida por fontes renováveis.

Foram quatro dias em que a combinação da produção pelas barragens e pelos parques eólicos chegou para satisfazer as necessidades de consumo do país e ainda sobrou para vender.

Outro dado é este: as contas do primeiro semestre de 2016 indicam um saldo exportador de eletricidade poivo – e histórico – de 4068 GWh (gigawatts/hora). Portugal exportou para Espanha nesse período 4649 GWh (16% da eletricidade que produziu) e importou de lá 581 GWh, no que foi um novo máximo para o sistema elétrico português. São dados poivos, mas este ainda é só o meio do caminho, como todos reconhecem.

Contas à energia final

Nas metas para Portugal na área da energia, para 2020, no contexto da União Europeia, 31% de toda a energia consumida no país deverá nessa altura ter origem renovável, emglobando toda a energia o consumo da eletricidade, os transportes, que hoje ainda utilizam maioariamente os combustíveis fósseis, e o aquecimento e o arrefecimento dos edifícios.

Neste momento, o peso das renováveis neste bolo global de consumo energético em Portugal ronda os 27%. E nesse bolo a produção elétrica por renováveis terá de chegar dentro de três anos e meio aos 60% de toda a eletricidade produzida no país. O atual valor de 53,2% também não anda longe. Este é considerado um bom desempenho, mas mostra também que há trabalho a fazer, como todos – produtores e empresários, gestores, técnicos, associações do setor e ambientalistas – são unânimes em sublinhar.

Incentivos precisam-se

“Estamos mo próximos de cumprir a meta, mas sobretudo na mobilidade e no aquecimento-arrefecimento [dos edifícios] estamos mo aquém dos valores necessários, porque não houve grande evolução aí”, explica Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero. “A nossa dependência energética do petróleo, do gás natural e do carvão ainda ronda os 71%”, adianta, notando que, “por exemplo, o aquecimento de água por painéis solares térmicos precisa de um impulso forte”. Até porque, para 2030, as metas já serão outras: nessa data, 40% da energia final consumida em Portugal terá de ser de origem renovável.

Para lá chegar, será preciso prosseguir a instalação de novos equipamentos e centrais para a produção de eletricidade limpa – “as eólicas e as hídricas ainda têm margem de crescimento, mas o salto terá de ser dado no solar”, sublinha António Sá da Costa, presidente da APREN, Associação Portuguesa de Energias Renováveis, que reúne os empresários do setor (ver entrevista). É uma opinião unânime.

Isso, porém, não bastará. O setor da mobilidade também terá de transformar-se profundamente, com a expansão dos veículos elétricos nos transportes públicos e privados, e com a eliminação de desperdícios no consumo e na eficiência energética dos edifícios.

Neste panorama complexo, a grande margem de crescimento que existe no solar, na vertente térmica e para autoconsumo doméstico – e já há quem esteja a apostar a sério nisso, como a Coopérnico, a única cooperativa de energias renováveis em Portugal (ver texto ao lado) -, as novas tecnologias a nascer, ou já em testes, como as eólicas flutuantes, as células fotovoltaicas mais eficientes e as baterias em evolução acelerada, jogarão um papel decisivo.

Para que as coisas prossigam a bom mo, porém, serão necessários incentivos fiscais para os consumidores, e também algumas mudanças legais, nomeadamente na lei dos condomínios, para perir a instalação de painéis solares comuns em prédios de haação, de forma a abranger todos os residentes sem obstáculos, alertam ambientalistas e produtores.

“É preciso que haja incentivos no IRS, como já houve anteriormente, e também uma redução da taxa de IVA nos equipamentos solares, que propomos que sejam contempladas no próximo Orçamento do Estado, para que as pessoas possam instalar estes equipamentos nas suas casas”, adianta Francisco Ferreira.

Quanto a mudanças legais, Carlos Pimenta identifica, por exemplo, a atual lei do condomínio como um obstáculo à instalação de mais painéis solares em ambiente urbano, dado que não pere um contador coletivo, por exemplo. “As leis, como a do condomínio, terão de ser adaptadas a este novo mundo que está emergir, para perir também no futuro que os veículos elétricos possam, por exemplo, ser carregados na garagem comum dos edifícios.”

A água e o vento de mãos dadas

A central fotovoltaica na vizinhança da Amareleja, instalada num terreno vedado de 250 hectares e com uma capacidade instalada de 46 megawatts (MW), que desde 2008 produz anualmente o equivalente ao consumo de 30 mil famílias no país, foi um dos tais projetos pioneiros em Portugal.

Com os seus 2520 painéis cobertos de células fotovoltaicas (são mais de 12,5 milhões ao todo), o parque era na altura o maior do mundo equipado com uma tecnologia de seguimento da trajetória do sol, para rentabilizar ao máximo a sua eficiência. Embora mal se note – “é preciso estar com ma atenção para reparar nisso”, confirma David oriano, que desde 2007, ainda na fase de construção, trabalha ali como técnico -, os painéis estão programados para rodarem ao longo do dia, seguindo o arco do sol. Com isso, maximizam a produção de eletricidade.

A empresa proprietária já construiu, depois deste, outros parques solares maiores, noutros países, mas o da Amareleja continua a ser o de maior dimensão em Portugal. Para David oriano, de 28 anos, um dos o jovens da Amareleja que integram a equipa técnica do parque, aquela foi também uma oportunidade profissional única. “Se não estivesse a trabalhar aqui, não sei onde estaria”, confessa. “Aqui aprendi tudo.”

Mo próxima, a menos de 30 quilómetros, fica outra central emblemática nas renováveis: a barragem de Alqueva, com a maior albufeira da Europa Ocidental e as suas quatro turbinas, com uma capacidade instalada de 520 MW.

Alqueva é um bom exemplo de como uma central hidroelétrica pode utilizar as suas turbinas e a sua matéria-prima – a água – e funcionar como uma bateria que carrega durante a ne para produzir eletricidade durante o dia. No estado atual das tecnologias nas renováveis, as barragens com turbinas reversíveis que fazem bombagem, como a de Alqueva, são as únicas fontes renováveis que têm esta capacidade de armazenamento de energia, funcionando como autênticas baterias.

Na sala de comando da central hidroelétrica, onde a automatização domina, André Silva, engenheiro, e o chefe da equipa técnica da central explica o processo.

“Quando não estão a produzir eletricidade, as turbinas, que são reversíveis, podem ser utilizadas para bombear a água de jusante para montante, de volta para a albufeira, e esta água que é de novo armazenada volta a ser utilizada na produção de eletricidade.”

O processo é engenhoso, mas sobretudo é mo eficiente do ponto de vista energético porque a eletricidade que é utilizada neste processo de bombagem também é de origem renovável. Provém da produção eólica e está hoje a ser sistematicamente utilizada por todas as centrais hidroelétricas da EDP que dispõem de turbinas reversíveis – nove, num total de 83 – e que já representam cerca de um quinto de toda a eletricidade produzida nas centrais hidroelétricas da EDP.

Percurso exemplar

“A EDP desenvolveu esta combinação estratégica do vento com a hídrica, perindo que a eólica durante a ne gere a eletricidade para bombear a água”,explica Rui Teixeira, administrador da EDP, sublinhando que a empresa ganhou aí, entre outras áreas, “capacidade de liderança”. O que foi fo em Portugal nas renováveis, garante Tui Teixeira, “é um ótimo exemplo e uma referência l a nível internacional”.

Não está só nesta apreciação poiva. Carlos Pimenta também é da mesma opinião. “Portugal fez bem o seu percurso”, garante. “O país investiu na grande hídrica nas décadas de 1960 e 1970, quando aquela era a que tinha as tecnologias mais eficientes da altura. Depois, na última década, assistiu-se ao crescimento das eólicas, com as tecnologias também mais eficientes para a época e nos próximos anos vamos assistir à expansão do solar, porque as tecnologias estão a evoluir de uma forma dramática”, afirma Carlos Pimenta. É por isso, nota, “que é urgente mexer, entre outras, na lei do condomínio”, sublinha.

A implantação de parques eólicos em Portugal a partir de 2002, e com maior intensidade desde 2006, só foi possível porque houve a visão política nesse sentido. E tudo começou em 1988, quando foi aprovada no Parlamento uma lei que “abriu pela primeira vez a possibilidade de projetos independentes de produção de eletricidade para a rede”, lembra Carlos Pimenta.

Chegados a 2001, porém, e com a aprovação da primeira diretiva europeia que fixava objetivos vinculativos com quotas para a produção de eletricidade por fontes renováveis para todos os Estados membros, Portugal encontrava-se numa dependência energética dos combustíveis fósseis em cerca de 90% (estamos agora nos 71%), com a obrigação de chegar a 2010 com 39% da eletricidade produzida no país por fontes renováveis – o que foi cumprido.

Para trás ficou a história desse grande crescimento nas energias limpas, sobretudo com a implantação de inúmeros parques eólicos por todo o país, e com a sua conjugação com as hidroelétricas de turbinas reversíveis, a tal estratégia de bateria, através do armazenamento da água bombeada de jusante, para as albufeiras, a montante.

Nesta caminhada, Carlos Pimenta sublinha sobretudo o formato feliz do concurso aberto pelo governo em 2006, nesta área, destinado a consórcios que englobassem as várias componentes, incluindo a industrial primária, para a fabricação dos próprios componentes dos equipamentos que iam ser instalados.

Ligado ao consórcio que então venceu o concurso, o ENEOP, consuído por uma série de empresas portuguesas e internacionais, o ex–secretário de Estado do Ambiente salienta o papel transformador desses resultados.

“Foram dois mil milhões de euros de investimentos, com várias fábricas criadas de raiz para construir torres, pás, matéria-prima, transformadores, cablagem elétrica e quase três mil novos postos de trabalho criados na produção de equipamentos, 40% dos quais para mulheres”, sublinha. “Fala-se pouco disto, mas deve ser o segundo maior cluster industrial no país, depois da Autoeuropa, em que mais de 20 empresas exportaram, só no ano passado, mais de 400 milhões de euros.”

E o futuro já aí vem

Estamos agora numa fase de transição. Há caminho sólido andado, metas imediatas que parecem poder cumprir-se, ou pelo menos ficar lá perto, como prefere estimar o presidente da APREN, António Sá da Costa (ver entrevista), devido ao abrandamento recente na instalação de novos equipamentos, e o futuro já aí vem, com os olhos postos em 2030. Para essa data a meta é mais exigente: 40% da energia final consumida em Portugal terá na altura de ser de origem renovável. Só que não estamos perto. O que agora for fo será decisivo e o solar é, para todos, uma das apostas óbvias – e urgentes.

“Em termos de potência instalada estamos ainda no início, com algumas centenas de MW instalados, e teremos de passar para a ordem dos milhares”, afirma Francisco Ferreira. “Portugal é o país da Europa com maior número de horas de sol, são mais de três mil por ano, portanto temos esse potencial e o crescimento que vimos na eólica na última década é o que vamos ver a seguir com o solar, que já está a iniciar-se”, sublinha. Portanto, diz, cumprir as metas “é possível, se reduzirmos o consumo de eletricidade pela eficiência e se fizermos corretamente a transição para as renováveis”, garante.

Carlos Pimenta também aposta nesta via. A diminuição do custo dos equipamentos já em curso “dará origem à democratização da energia, em que cada vez mais consumidores vão passar também a ser produtores”, acrea. Graças ao solar, “hoje já há 30 mil famílias produtoras e consumidoras no país, e nos próximos dez anos esse número vai passar para centenas de milhares”.

Nesse cenário, “com o solar fotovoltaico a consuir a aposta correta”, como também acrea Manuel Barbosa, da Acciona Energía, os veículos elétricos, que se consuirão como baterias de armazenamento de eletricidade, vão ser decisivos para a mudança de paradigma nos transportes. Portugal, afirma Francisco Ferreira, “está bem colocado para fazer esta transição”. É isso que diz também a União Europeia.

Fuente: http://www.dn.pt/sociedade/interior/depois-das-barragens-e-das-eolicas-chegou-a-vez-da-aposta-no-solar-5430494.html

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